Por
entender que a tipificação do crime de desacato a autoridade é
incompatível com o artigo 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos
(Pacto de São José da Costa Rica), a 5ª Turma do Superior Tribunal de
Justiça afastou a aplicação do crime tipificado no Código Penal. A
decisão foi tomada na sessão desta quinta-feira (15/12) e vale apenas
para o caso julgado. Embora não seja vinculante, é importante precedente
para futuros recursos em casos semelhantes.
O
ministro relator do recurso no STJ, Ribeiro Dantas, ratificou os
argumentos apresentados pelo Ministério Público Federal de que os
funcionários públicos estão mais sujeitos ao escrutínio da sociedade, e
que as “leis de desacato” existentes em países como o Brasil atentam
contra a liberdade de expressão e o direito à informação.
A
decisão, unânime na 5ª Turma, ressaltou que o Supremo Tribunal Federal
já firmou entendimento de que os tratados internacionais de direitos
humanos ratificados pelo Brasil têm natureza supralegal. Para a turma, a
condenação por desacato, baseada em lei federal, é incompatível com o
tratado do qual o Brasil é signatário.
O
recurso especial foi apresentado pelo defensor público Luis Cesar
Francisco Rossi, da Defensoria Pública de São Paulo. A tese acolhida
pelo STJ vem sendo defendida pelo órgão desde 2012, quando acionou a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados
Americanos, para contestar uma condenação criminal por desacato.
Controle de convencionalidade
Ao apresentar seu voto, o ministro Ribeiro Dantas destacou que a decisão
não invade o controle de constitucionalidade reservado ao STF, já que
se trata de adequação de norma legal brasileira a um tratado
internacional, o que pode ser feito na análise de um recurso especial, a
exemplo do que ocorreu no julgamento da 5ª Turma.
“O
controle de convencionalidade não se confunde com o controle de
constitucionalidade, uma vez que a posição supralegal do tratado de
direitos humanos é bastante para superar a lei ou ato normativo interno
que lhe for contrária, abrindo ensejo a recurso especial, como, aliás,
já fez esta corte superior ao entender pela inconvencionalidade da
prisão civil do depositário infiel”, explicou Ribeiro Dantas.
O
ministro lembrou que o objetivo das leis de desacato é dar uma proteção
maior aos agentes públicos frente à crítica, em comparação com os
demais, algo contrário aos princípios democráticos e igualitários que
regem o país. “A criminalização do desacato está na contramão do
humanismo, porque ressalta a preponderância do Estado — personificado em
seus agentes — sobre o indivíduo”, destacou o ministro.
O
magistrado apontou que a descriminalização da conduta não significa
liberdade para as agressões verbais ilimitadas, já que o agente pode ser
responsabilizado de outras formas pela agressão. O que foi alterado é a
impossibilidade de condenar alguém, em âmbito de ação penal, por
desacato a autoridade.
No caso submetido a
julgamento, um homem havia sido condenado a cinco anos e cinco meses de
reclusão por roubar uma garrafa de bebida avaliada em R$ 9, por
desacatar os policiais que o prenderam e por resistir à prisão. Os
ministros afastaram a condenação por desacato.
Precedentes
A decisão não é inédita. Também em controle de convencionalidade, o juiz
Alexandre Morais da Rosa, da 4ª Vara Criminal de Florianópolis,
absolveu um homem denunciado por desacato e resistência à prisão após
uma briga.
O magistrado também levou em conta a
prevalência do Pacto de San José da Costa Rica em relação ao Código
Penal. "Cumpre ao julgador afastar a aplicação de normas jurídicas de
caráter legal que contrariem tratados internacionais versando sobre
Direitos Humanos", registrou.
Para ele, o
Direito Penal deve cuidar apenas das situações que violam bem jurídicos
fundamentais, que não possam ser protegidas por outro ramo do Direito.
Não é o caso, citou, da crítica dirigida à autoridade, ainda que
indecorosa.
"A experiência bem demonstra que,
na dúvida quanto ao teor da manifestação (ou mesmo na certeza quanto à
sua lidimidade), a tendência é de que se conclua que o particular esteja
desrespeitando o agente público — e ninguém olvida que esta situação,
reiterada no cotidiano social, representa infração à garantia
constitucional da liberdade de expressão", citou.
O
delegado da Polícia Civil do Paraná Henrique Hoffmann discorda da
decisão. "Não há direitos absolutos, e assim como o cidadão tem o
direito de manifestar seu inconformismo contra o governo, o funcionário
público tem o direito de não ser achincalhado", diz. Ele acrescenta
que, ainda que o crime de desacato tenha sido afastado, permanece a
injúria e a necessidade de reparação civil. Com informações das assessorias de imprensa do STJ e da Defensoria Pública de SP.
*Texto atualizado às 16h10 do dia 16/12 para acréscimo de informações.