Estado laico?
Por liberdade religiosa, cultos afro lutam contra o preconceito em vários níveis
Religiões de matriz africana, como umbanda e
candomblé, exercem forte influência na cultura brasileira. No entanto,
comunidades de terreiro são estigmatizadas e alvos de ódio
por Patricia Iglecio, da RBA
publicado
19/09/2014 11h57,
última modificação
07/05/2015 13h51
tomaz silva/agência brasil
Samba, carnaval, acarajé, feijoada e jogos de búzios são elementos populares da cultura brasileira de origem africana
São Paulo – O dia 21 de setembro será marcado, no Rio de
Janeiro, pela realização da 7ª edição da Caminhada em Defesa da
Liberdade Religiosa. A mobilização é uma iniciativa da Comissão de
Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) e coloca cada vez mais pessoas
nas ruas pela liberdade de culto. Neste ano, com a disputa eleitoral em
curso, a entidade busca sensibilizar a sociedade sobre o tema,
reivindicar mais ação do poder público diante à violência e
discriminação contra comunidades religiosas vulneráveis no Brasil,
representar politicamente esses grupos e combater os discursos de ódio.
Além disso, o evento estará pautado por acontecimentos recentes que
expõem os perigos do fundamentalismo religioso que confronta direitos
humanos e agride os princípios do Estado laico, inclusive o crescimento
de denúncias de ataques a cultos afro-brasileiros em órgãos como a
Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República e a Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB).
Em 2008, ano em que a CCIR foi criada, 20 mil pessoas aderiram à
primeira edição da caminhada. O maior público se deu na quinta edição,
em 2012, quando 210 mil lotaram às ruas do Rio de Janeiro. A comissão é
uma organização da sociedade civil, criada por lideranças religiosas de
umbanda e candomblé, mas que agrega espíritas, judeus, católicos,
muçulmanos, malês, bahá’ís, evangélicos, hare Krshnas, budistas,
ciganos, wiccanos, seguidores do Santo Daime, ateus e agnósticos.
Outras entidades sociais e ainda representantes do Tribunal de
Justiça do Rio, do Ministério Público e da Polícia Civil a compõe. Como é
o caso do delegado Henrique Pessoa, titular da 79ª Delegacia de Polícia
do Rio. Ele atua na área desde 2009, com a atenção voltada às religiões
afro-brasileiras, que, de modo geral, localizam-se em regiões de
vulnerabilidade social e são estigmatizadas.
O delegado conta que a entidade foi criada por religiosos que
observavam um aumento da violência contra as comunidades. Recentemente,
ele mesmo se viu numa situação de conflito físico motivada por
intolerância. Atacado por 20 evangélicos neopentecostais no último dia
3, entrou em confronto com o grupo liderado pelo pastor Tupirani da Hora
Lopes, da igreja evangélica neopentecostal Geração Jesus Cristo.
Henrique Pessoa alega que é perseguido pelo grupo desde que assumiu as
bandeiras da defesa da liberdade religiosa e dos direitos humanos das
comunidades afro.
"Lideranças da umbanda e do candomblé procuraram [em 2008] a chefia
da Polícia Civil. E o chefe de polícia, na época, achou que seria
interessante a gente fazer um levantamento para examinar o que estava
ocorrendo", diz. Pessoa era então coordenador de inteligência polícia e
relata que, a comandar a operação de mapeamento de situações de
violência, passou a se envolver com as lideranças religiosas da CCIR. A
entidade procurou as autoridades para denunciar o aumento da violência
que ocorria contra as comunidades religiosas e exigir uma ação de defesa
dos órgãos públicos.
Para Henrique, o "grande mérito" da organização é abranger todas as
religiões. "A CCIR não tem nem sequer segmento legal, não tem estatuto,
CNPJ, nada. É um grupo de religiosos que se reúne toda quarta-feira e
faz as melhores ações", ressalta. O delegado avalia que o conjunto da
atuação das lideranças religiosas e dos órgãos públicos freou a
violência contra as comunidades religiosas no Rio de Janeiro. Além da
CCIR, surgiram outras entidades que se mobilizam pela liberdade
religiosa.
Em 2013, professores da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio
de Janeiro iniciaram um trabalho, em parceria com líderes religiosos,
para mapeamento de todos os terreiros do estado. A pesquisa de campo
durou 20 meses e deu visibilidade a essas comunidades que, na grande
maioria, ficam em lugares mais pobres. Foram registrados 840 terreiros.
Desses, 430 já sofreram ataques. Evangélicos foram responsáveis por 40%
dos casos.
No entanto, quando a Polícia Civil iniciou o mapeamento da
intolerância religiosa, se deparou com um problema sistêmico. A Lei nº
7.716, de 1989, penaliza crimes resultantes de preconceito de raça ou de
cor. Redigida em 1997, a lei definiu como crime "discriminação ou
preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional."
"A versão que tinha sido alimentada no sistema até 2009 sobre casos
de intolerância estava defasada. Então, quando nós fizemos a pesquisa de
incidência, tivemos essa dificuldade. Em função disso, nós tivemos a
chance de corrigir o sistema, incluindo a formulação da lei de
intolerância religiosa", explica o delegado. Com a atualização do
sistema, a Polícia Civil do Rio de Janeiro registrou um aumento de 400%
de notificações de crimes de intolerância religiosa.
Mesmo com a medida, Henrique avalia que outros casos de discriminação
não foram identificados pela dificuldade de delegados em reconhecer as
denúncias e registrá-las corretamente. Os policiais incluíam os crimes
na lei contra preconceito racial, ou nem registravam. Nesse sentido, o
segundo passo da atuação da Polícia Civil foi um trabalho de
conscientização sobre direitos humanos com os agentes.
A inteligência da polícia passou a realizar, semanalmente, aulas de 4
horas discutindo direitos humanos, com ênfase em crimes de ódio,
intolerância religiosa, preconceito racial e combate à homofobia. Além
disso, as aulas trabalham formas de abordagem.
O delegado afirma que é preciso conscientizar o policial da
responsabilidade em registrar adequadamente um crime de discriminação
religiosa. "Porque a gente observou que as pessoas não davam a devida
atenção ao fato. Achavam que era uma briga, diziam ‘deixa para lá'",
observa.
Henrique explica à reportagem da
RBA que não é possível passar
todos os dados coletados, pois há impedimentos judiciais, mas afirma
que, com os trabalhos, a violência contra comunidades afro-brasileiras
no Rio se estabilizou de 2012 para cá. Por isso, a polícia do estado é
uma referência nacional na atuação contra crimes de intolerância
religiosa.
No entanto, para o delegado, ainda é preciso evoluir, principalmente
nos valores da sociedade. Pessoa pontua que a agressão de evangélicos
contra umbandistas e candomblecistas é uma situação nacional, mas
ressalta que, embora a maior parte das agressões parta de tendências
evangélicas neopentecostais, não se pode generalizar para todas as
igrejas de origem protestante. "As igrejas mais tradicionais, batistas,
embora tenham convicções religiosas, não chegam ao nível da intolerância
religiosa. Eles são respeitosos", argumenta.
Quando questionado sobre ser uma exceção entre delegados, por
reconhecer os direitos de grupos minoritários, Henrique responde que não
se considera um caso isolado. "Me reconheço como militante e pioneiro
na abordagem do tema e sou realmente uma pessoa que vai além da minha
atribuição institucional, mas não sou uma exceção. Hoje, tenho diversos
colegas que encaram a situação."
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fernando frazão/agência brasil
- Para deputado, governo Lula deu visibilidade as comunidades religiosas de matrizes africanas
Coragem Política
O deputado federal Edson Santos (PT-RJ) avalia que a constituição de
políticas em defesa de comunidades de matrizes africanas ficou mais
visível, no âmbito do poder público, no início do governo do
ex-presidente Lula. "A partir dali, a população de religiões
afrodescendentes passou a enxergar, no governo brasileiro, um ambiente
onde pudesse discutir não só o problema da intolerância religiosa, mas
tudo o que envolve a vida dessas comunidades", afirma.
A Lei nº 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, foi
decretada pela presidenta Dilma Rousseff (PT) em 2010. O estatuto altera
os mecanismos já existentes na Constituição referentes à discriminação
de raça, crimes de ódio e exclusão social. Busca efetivar a igualdade de
oportunidades da população negra, defender os direitos étnicos
individuais e combater formas de intolerância étnica, procurando
difundir o respeito às religiões de matriz africana.
Porém, Edson destaca que a representação política desses grupos ainda
é pequena em comparação à bancada evangélica, que tem expressão
“bastante considerável” no Congresso Nacional e uma postura de
intolerância com os praticantes de umbanda e candomblé.
"Vejo com preocupação o crescimento da representação política da
bancada fundamentalista. Não só com relação às comunidades religiosas,
mas em relação ao Brasil mesmo", considera. Para o deputado, deve haver
um debate “muito forte” não só nos órgãos públicos, mas, na sociedade
brasileira, sobre a tolerância e defesa dos direitos humanos.
Edson diz que é preciso combater o fundamentalismo religioso que
busca se espalhar pela política. "Eles têm, por exemplo, o candidato
Pastor Everaldo (candidato a presidente pelo PSC). A gente tem que ver
como isso vai se dar. A bancada na Câmara já é bastante forte, mas são
grupos que nós temos que trabalhar para articular o isolamento", diz.
Entretanto, o deputado afirma que ainda não há uma articulação capaz
de coibir o crescimento da bancada. "Até pelo que eles apresentam como
força eleitoral. Há certa condescendência com esse segmento."
Santos integra a Frente Parlamentar em Defesa das Comunidades de
Terreiro, criada em maio deste ano. A iniciativa é uma reação à
determinação do juiz federal do Rio de Janeiro (quem é o juiz, de quando
é a determinação dele, vamos relembrar ou contar para o leitor) que
considerou cultos de matrizes africanas como práticas não religiosas e
avaliou que vídeos expostos no YouTube, em que evangélicos
neopentecostais atacam terreiros, poderiam continuar no ar.
A frente é composta por 13 deputados federais espalhados pelo país.
Edson explica que, devido ao período eleitoral, a articulação está
reduzida, mas que todos os parlamentares que participam possuem algum
nível de atuação em defesa das religiões afro.
Apesar dos avanços que o tema conquista no Rio de Janeiro, o deputado
denuncia que a vulnerabilidade das comunidades permanece. "Há omissão
do Estado ainda, mas o tema está visível em nível de legislação
brasileira. Existem instrumentos que possibilitam ao Estado impedir que
manifestações de intolerância ocorram no Brasil. Agora, é preciso ter a
coragem política de fazê-lo", ressalta.
Contra o desconhecimento
O advogado Jader Freire de Macedo Júnior integra a Comissão de
Direito e Liberdade Religiosa da OAB em São Paulo. Ele conta que a
entidade colhe relatos de agressões sofridas por praticantes de qualquer
religião e transforma em processos judiciais, no entanto, nenhum
parecer terminou em condenação. O órgão foi criado em 2006, por
advogados ligados a diferentes vertentes religiosas. Atualmente, existem
outras comissões espalhadas pelo estado, uma no Rio de Janeiro e outra
em Curitiba, que dialogam e atuam em conjunto. A OAB nacional articula a
criação de uma comissão no Distrito Federal.
Jader é pai de santo e sacerdote umbandista. "Eu sou sacerdote
religioso de umbanda, mas dentro da Comissão de Direito e Liberdade
Religiosa não há representante religioso”, explica o advogado. Ele
explica que não há uma separação por vertente religiosa na entidade para
lidar com os casos de discriminação, mas, sim, por especialidade. “Cada
um de nós tem uma especialidade profissional. Então, procura-se
preservar a especialidade quando se vai tratar de qualquer relato". Não
há quantificação e relação de dados dos relatos recebidos ao longo dos
anos de atuação da comissão.
O advogado cita um processo judicial em andamento, de uma adolescente
de 15 anos, estudante da escola estadual Antônio Caputo, em São
Bernardo do Campo
, que era obrigado a fazer orações evangélicas e
sofria perseguição por parte de colegas por ter o pai sacerdote de
candomblé. A Delegacia de Ensino da região entendeu que foi um "excesso
do pai da criança levar a questão à Justiça", embora alguns alunos
tenham expressado diretamente ao Conselho Tutelar local que o rapaz era
"adorador do diabo" e, por isso, sofria discriminação na sala de aula.
Ele lembra ainda os rituais de cada religião para apontar o
desconhecimento de quem ataca os cultos de matriz africana. "Quem
conhecer um pouquinho da liturgia católica e um pouquinho da liturgia do
candomblé e umbanda vai ver que o diabo que eles chamam não tem nada a
ver com a gente. Nós nem admitimos esse diabo", esclarece.
Jader recorda que a discriminação é tanta que, há uma década, as
casas de culto precisavam de autorização de uma "delegacia de costumes"
para funcionar. A Delegacia Estadual de Crimes contra os Costumes, Jogos
e Diversões Públicas da Diretoria-Geral da Polícia Civil foi criada em
1924 e extinta apenas em 2002. O mecanismo funcionava como um aparelho
conservador do estado e, muitas vezes, discriminatório.
"Quando isso terminou, a Igreja Católica e os evangélicos, de maneira
geral, passaram a usar a terminologia de que nós somos adoradores do
diabo", alega.
Ele avalia que evangélicos e católicos têm o direito de acreditar que
o diabo deva ser execrado. "Faz parte da liturgia deles, mas, no
momento em que eles me comparam ao que chamam de diabo, não estão
tratando de liturgia, mas, sim, da minha pessoa. E estão me ofendendo",
diz.
Mesmo nesse contexto de conflito, o advogado confessa que os
preconceitos cotidianos que sofrem os praticantes da umbanda e do
candomblé não o atingem significativamente. "Sou umbandista, mas as
pessoas não me tratam com tanto desrespeito em função dos títulos que
carrego."
Outro caso emblemático relatado pela OAB-SP aponta abusos numa
investigação policial. Em 2013, uma delegada do 3º Distrito Policial de
São Bernardo invadiu um terreiro de candomblé na região e abriu um termo
de maus tratos aos animais contra o pai de santo responsável. Pediu
para o Centro de Zoonoses municipal verificar a situação. O órgão
afirmou que os animais estavam bem tratados e viviam em condições
apropriadas. A delegada, apesar de dizer que respeita a liberdade
religiosa, finaliza o boletim de ocorrência citando uma passagem da
bíblia, no intuito de desmerecer as práticas das religiões de origem
afro. Jader não revela o nome da delegada para não comprometer o
processo judicial que é movido contra ela.
O pai de santo e sacerdote de umbanda, Rafael Jussara, também é
membro do grupo de intolerância religiosa da OAB. Ele é o único
integrante da comissão não advogado. Embora umbandista, Rafael explica
que a atuação como representante inclui o candomblé, pois as religiões
sofrem os mesmos preconceitos. "Defendemos também o culto de Jurema (r
itual de origem indígena incorporado por crenças africanas),
o que for ligado ao negro e ao índio. Nós, que somos umbandistas ou
candomblecistas, procuramos falar uma linguagem só e defender a cultura
negra", enfatiza.
Recentemente, o pai de santo teve a casa pichada com as frases
"Deus é maior" e "Deus está presente", mas não acusa a atitude como
partida de evangélicos ou católicos. "Nós não sabemos quem foi, mas eu
até gostei, porque Deus está presente na minha casa", ironiza. No
entanto, ele admite que já sofreu perseguição e discriminação.
Para Rafael, toda a cultura negra sofre grande preconceito no país e a
sociedade não quer entender o que negros e índios representam na
identidade cultural brasileira. "Nós estamos falando de orixá, mas nós
estamos falando do negro, nós estamos falando de caboclo, mas nós
estamos falando do índio", considera. O umbandista acredita que todo o
dia "é dia desses povos" na história do Brasil. "São povos que sempre
lutaram e resistiram às imposições brancas", reflete.
Ele destaca que todos estão sujeitos há algum tipo de ação
preconceituosa, mas, se o indivíduo é negro, praticante de religião de
matriz africana e ligado ainda à cultura LGBT, o preconceito se
multiplica.
Ministro religioso desde 2008 e administrador do templo Tumbiá
Jussara, que fica localizado na Lapa, zone oeste de São Paulo, Rafael
garante que há um trabalho social "forte" no entorno dos terreiros de
umbanda e candomblé na cidade. No entanto, agressões verbais de
moradores do bairro são constantes. "Posso te garantir que a grande
maioria dos praticantes da religião já foi chamado de macumbeiro",
conta, apesar de enfatizar que "Todas as casas de culto são
casas de axé em que se cultua a felicidade e a verdade." Foi diante
dessa contradição que Rafael decidiu integrar a Comissão contra
Intolerância Religiosa da OAB.
Na avaliação de adeptos das religiões afro, não é necessário criar
novos mecanismos de proteção e fiscalização da discriminação religiosa,
mas divulgar e ampliar os que já existem, como a Comissão da OAB e a
Delegacia de Crimes Contra a Religião (Decradi). Porém, ainda há
resistência de delegados de São Paulo em registrar crimes contra a
religião. As descriminações são geralmente registradas como brigas entre
vizinhos.
Os registros da OAB-SP revelam que evangélicos neopentecostais são os
principais autores de agressões físicas e verbais contra umbandistas e
candomblecistas. Os principais casos são de depredação e pichações de
terreiros.
Discriminação exclusiva
O Disque 100 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH/PR) é um serviço que recebe demandas de violações de
direitos humanos com a atenção voltada para grupos vulneráveis, como
crianças e adolescentes, LGBT, pessoas em situação de rua e comunidades
indígenas. Em 2011, com o aumento da violência contra comunidades
religiosas e consequente mobilização da sociedade civil, a SDH ampliou
os trabalhos em defesa da liberdade religiosa e realizou políticas de
conscientização de crimes de intolerância, em parceria com entidades que
já lutavam por essa causa.
Com as medidas, em 2001, a secretaria recebeu 15 denuncias no país
relacionadas à intolerância religiosa. No ano seguinte, foram
registrados 109 casos, crescimento de 626% nas situações notificadas.
São Paulo e Rio de Janeiro, nos últimos quatro anos, variam a liderança
de crimes de intolerância denunciados.
Só no primeiro semestre deste ano, a secretaria já recebeu 96
notificações saídas de alguns pontos do território nacional, mas com
concentração na região Sudeste. São 22 casos em São Paulo, 21 no Rio de
Janeiro e nove em Minas Gerais.
Embora os registros tenham aumentado significativamente, a SDH avalia
que as denúncias ainda não correspondem a real situação de intolerância
e indica que as religiões de matriz africana são as mais discriminadas.
Os relatos apontam agressões, depredações de terreiros e violação de
direitos na internet. Em 2012, a Central Nacional de Denúncias de
Crimes Cibernéticos (CND) recebeu 494 denúncias de intolerância
religiosa praticadas em perfis hospedados no Facebook.
A Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir)
ainda não realizou um mapeamento de todos esses dados, no entanto, o
ouvidor Carlos Alberto de Souza e Silva Junior avalia que, apesar dos
avanços das políticas sociais e raciais, há uma reação intolerante,
preconceituosa, discriminatória e racista.
"Um dos indicativos que ainda precisamos verificar com cautela [é a
atuação de] algumas igrejas neopentecostais, que vem pregando o ódio,
inclusive na internet. Há ao menos um caso denunciado à ouvidoria de uma
igreja cujo líder espiritual vem revelando esse ódio contra as
religiões de matriz africana, associando-as a coisas do diabo", relata o
ouvidor.
Junior também ressalta que há discriminação de órgãos públicos, que
legitimam a intolerância contra essas religiões. "Eu vejo tudo isso como
um fenômeno umbilicalmente ligado ao racismo, algo que não pode ser
desassociado da questão do preconceito racial. Tanto que, na Seppir, não
recebemos nenhuma denúncia dando conta de que outras religiões, além
daquelas de matriz africana, sejam alvo de discriminação", conclui.
No dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa, 21 de janeiro, a
SDH da Presidência da República instalou o Comitê Nacional de Respeito à
Diversidade Religiosa. Ainda recente, o órgão busca articular tanto o
poder público como as entidades da sociedade civil que lutam contra a
intolerância.
O Dia Nacional de Combate à Intolerância Religiosa foi instituído em
2007 pela Lei Federal 11.635, em homenagem a Gildásia dos Santos e
Santos, a Mãe Gilda, do terreiro Axé Abassá de Ogum, de Salvador. A
adepta do candomblé enfartou após ver o próprio rosto estampado na
primeira página da Folha Universal, jornal evangélico neopentecostal da
Igreja Universal, com a manchete “Macumbeiros charlatões lesam o bolso e
a vida dos clientes.”
União conservadora
Segundo dados do censo de 2010 do IBGE, o número de adeptos do
catolicismo tem caído desde os anos 1990 no Brasil, apesar de a religião
ainda ter 64,6% da preferência da população (tinha 73,6% no
levantamento anterior, de 2000). Em contrapartida, religiões evangélicas
estão em ascendência, com 22,2% da população, antes possuíam 15,4%
. As religiões de matriz africana somam apenas 0,3% da população brasileira.
Na análise de pesquisadores, o
crescimento da representação
política do fundamentalismo nasce nesse processo, em que o número de
católicos diminui e o de evangélicos cresce.
Maria do Socorro Sousa Braga, professora de Antropologia da
Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), é integrante do Núcleo de
Estudos dos Partidos Latinos Americanos (Nepla). Explica que o grupo
pesquisa sobre a influência das religiões na política dos países da
América Latina. A respeito do Brasil, há um estudo aprofundado com
relação ao avanço da religião evangélica nas instituições do poder
público.
A professora esclarece que não existe uma "bancada oficial" dos
evangélicos na vida orgânica da Câmara dos Deputados, como a dos
partidos, e sim uma união de políticos de diferentes legendas quando se
deseja aprovar alguma proposta de natureza religiosa e conservadora.
"Por se organizarem, você pode pensar que é uma bancada, porque,
informalmente, você pode considerar que é uma bancada, isso é o que a
maior parte da mídia faz, mas, formalmente, ela não existe", explica.
Maria diz que quando não há o interesse comum em aprovar medidas, os
integrantes da "suposta bancada evangélica" seguem o que o líder
partidário define junto ao partido. "Inclusive, eles são bem
fragmentados, bem heterogêneos, de diferentes partidos, têm desde
partidos da esquerda quanto da direita. É muito curioso isso", pondera.
Porém, os estudos do Nepla indicam que outros segmentos conservadores
da sociedade, que não são ligados aos evangélicos, se juntam a eles
quando a pauta de costumes conservadores é colocada na Câmara, caso dos
católicos. "É uma representação que está mais de acordo com questões
comportamentais, morais. É um movimento (de obstruir debates) que gira
em torno de direitos humanos, como o aborto, os casamentos
homossexuais", esclarece Maria.
O grupo de pesquisa descreve os aspectos que levaram à formação e o
fortalecimento da participação política do fundamentalismo evangélico. O
primeiro é a redução contínua do catolicismo no país desde a década de
1990, inclusive das correntes católicas mais progressistas. Acompanhado
desse fato, veio o avanço no debate e a conquista de direitos das
minorias discriminadas, questões consideradas "impensáveis" antes da
década de 1980. Nesse contexto, houve o crescimento das religiões
neopentecostais.
"O crescimento dessas questões comportamentais e morais, que dividem
grande parte da sociedade brasileira, atravessam a religião", avalia a
especialista. Para ela, o fundamentalismo surge como consequência da não
aceitação da ampliação dos direitos das minorias, o que fortalece e
estimula a violência contra classes mais vulneráveis.
Mesmo assim, a professora considera que o Brasil passa por um momento
de ampliação da democracia e da pluralidade dentro do Congresso.
"Vários grupos estão tendo acesso. Esse é um dos períodos mais
democráticos nesse sentido. Obviamente, ainda têm grupos muito mais
fortes do que outros", considera.
Laico para quem?
Pastor Elionai Muralha é como Elionai Ferreira Santos, candidato a
deputado estadual pelo Partido Renovador Trabalhista Brasileiro
(PRTB-BA), na Bahia, define o “nome de guerra”. Ele afirma que tem
levantado a bandeira pela "transposição" dos orixás dos espaços públicos
de Salvador por "amplo respeito à diversidade religiosa."
Na campanha eleitoral, o candidato defende que os 12 orixás expostos
no Dique do Tororó, que estão na represa histórica de Salvador desde
1995, sejam retirados e colocados nos terreiros requalificados. Em maio
deste ano, o governo do estado da Bahia determinou ordens de serviço
para a reforma de terreiros em Salvador, na Cachoeira e em Maragogipe,
no Recôncavo Baiano, para adequação das instalações. Muralha avalia que
os símbolos religiosos de umbanda e de candomblé que estão nas ruas
devem ser levados a esses lugares.
O Dique do Tororó é um importante ponto turístico de Salvador. Os
santos representados na represa são Iansã, Nanã, Ogum, Oxalá, Xangô,
Iemanjá, Oxum e Oxossi. "A exposição não permanente é 100% tolerável,
qualquer manifestação de crença não permanente é viável, exposição
permanente tem que ser para local de culto", argumenta o candidato. Para
Elionai, o Brasil é um país com uma gama “enorme” de igrejas que
defendem a fé cristã, portanto, a crença não se resume aos orixás e a
exposição deles não é um ritual "litúrgico."
"A Bahia não pode continuar sendo palco de uma crença. Ela tem que
defender o Estado laico", diz o pastor. Na visão dele, os extremos
surgem por excessos. E a exposição permanente de santos afro-brasileiros
é um “grande erro para a laicidade do Estado”. Ao mesmo tempo, Elionai
ressalta ter boas relações com pais de santos, mesmo com as
divergências.
"Mas não posso me declarar ser simpatizante dessas religiões porque o
meu fundamento doutrinário diverge", esclarece. A campanha propõe que a
medida é positiva para os terreiros. O candidato afirma que antes da
exposição dos deuses africanos na represa, os terreiros recebiam mais
visitas de turistas, curiosos em conhecer sobre os cultos e a exposição
dos orixás no dique desvaloriza a religião.
No entanto, apesar do discurso de defesa do Estado laico, Elionai
Muralha, na campanha eleitoral, não menciona a retirada de símbolos de
religiões cristãs, como bíblias, crucifixos e outras imagens dos espaços
públicos.
Cultura popular e história
-
gov/bahia
- A umbanda incorpora o candomblé, o catolicismo, o espiritismo, cultos indígenas e caipiras
O sociólogo e professor da USP Reginaldo Prandi afirma que, apesar da
baixa representatividade das religiões de matriz afro nos dados de
censos demográficos do país, em que evangélicos e católicos se
sobressaem, há uma marca afrodescendente muito forte na cultura
brasileira. Segundo ele, o contrário não ocorre, pois a religião
evangélica, por exemplo, não difunde hábitos nos costumes do povo. Ele
aponta o caso da música gospel, que só é capaz de alcançar a comunidade
crente.
Em artigo intitulado "As religiões afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia"
,
Prandi cita o samba, o carnaval, o acarajé, a feijoada, o despacho e os
jogos de búzios como práticas populares que têm origem nos rituais e
crenças das religiões de matriz africana.
Essa situação se construiu a partir dos mais de cinco milhões de
africanos vindos para o Brasil como escravos, entre os anos de 1525 e
1841, que trouxeram o candomblé. Em um primeiro momento, vieram os
bantos, povos localizados em regiões como o Congo, Angola e Moçambique.
Depois, os sudaneses, que vinham da Nigéria e do Benin, e são os iorubas
(ou nagôs) e os jejes. Atualmente, os negros formam 51% da população
brasileira, segundo dados do IBGE referentes a 2010.
As origens dos povos negros africanos são divididas entre dois
grupos: bantos e sudaneses. A riqueza e a pluralidade cultural são
complexas. E o candomblé é uma religião que representa a maioria dos
deuses africanos.
Sendo praticada por escravos, o culto dos negros foi perseguido e
realizado secretamente no Brasil, durante as madrugadas, nas senzalas e
matagais. Com a imposição do catolicismo sob os povos da América Latina e
negros escravizados, nasceu o sincretismo religioso. Os negros rezavam,
por exemplo, para Nossa Senhora da Conceição, mas, na verdade, se
dirigiam a Iemanjá. Quando oravam para Santa Bárbara, cultuavam Iansã,
associando os orixás aos santos católicos.
O candomblé realiza rituais ao ritmo de atabaques e cantos em idioma
ioruba ou nagô. Os ritos são guiados por pais de santo (que tem o nome
africano de babalorixá) e mães de santo (ialorixá). Os jogos de búzios
são feitos com um tipo de concha do mar, utilizada como um oráculo que
descobre os orixás de cada pessoa.
O sincretismo dos cultos africanos também ocorreu com os rituais da
cultura caipira e dos índios. Foi nesse sentido que, no início do século
20, poucas décadas depois da abolição da escravidão negra no Brasil,
nasceu, na cidade de Niterói (RJ), a umbanda, culto afro-brasileira.
A umbanda incorpora o candomblé, o catolicismo, o espiritismo, cultos
indígenas e também caipiras, mas a língua é o português e não dialetos
africanos. Também crê nos jogos de búzios, cultua os deuses africanos e
realiza ritos ao som de atabaques.
Há uma gama muito grande de orixás, mas os mais populares e
principais deuses cultuados nessas religiões são Xangô, Logun Edé,
Ossain, Ibeji, Irôko, Nanã, Omolú, Oxumarê, Oxalá, Exu, Ogun, Oxóssi,
Yemanjá, Iansã, Oxun, Obá e Ewá.
Os orixás incorporam as forças da natureza. Os arquétipos estão
relacionados às manifestações dessas forças e as características
aproximam-se dos humanos. Eles são passionais e cada um tem elementos
simbólicos, como cores, comidas, cantos, rezas, ambientes e instrumentos
de luta