Josué Montello - Os Tambores de São Luís - sinopse, comentário, trecho
São Luís, MA, 21 de agosto de 1917. Romancista e crítico. No ano de 1936, fixou residência no Rio de Janeiro e passou a exercer intensa atividade literária. Dirigiu a Biblioteca Nacional e o Serviço Nacional de Teatro. Ocupou cátedras de estudos brasileiros em universidades estrangeiras, entre elas Lima (Peru), Madri (Espanha) e Lisboa (Portugal). Foi adido cultural na embaixada brasileira em Paris (França) e embaixador junto à Unesco. Desde 1954 ocupa a cadeira nº 29 da Academia Brasileira de Letras onde ocupou a presidência entre janeiro de 1994 e dezembro de 1995. Sua obra abrange romances, ensaios, crítica, história e teatro.
Principais Obras:
O labirinto de espelhos (romance), 1952, reed. 1990, Nova Fronteira,
Rio de Janeiro;
Tambores de São Luís (romance), 1975, reed.1991, Nova Fronteira,
Rio de Janeiro;
Aleluia (romance), 1982, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
Romances e novelas/Josué Montello , 1986, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
O carrasco que era santo , 1994, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
Diário da noite iluminada , 1994, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
Uma sombra na parede (romance), 1995, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
A mulher proibida (romance), 1996, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
Enquanto o tempo não passa (romance), 1996, Nova Fronteira,
Rio de Janeiro;
Fachada de azulejos (crônicas), 1996, AML, São Luís;
Romances escolhidos , 1996, Nova Aguilar, Rio de Janeiro;
Memórias póstumas de Machado de Assis , 1997, Nova Fronteira,
Rio de Janeiro;
Os inimigos de Machado de Assis , 1998, Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
O Presidente Juscelino Kubitschek de minhas recordações , 1999,
Nova Fronteira, Rio de Janeiro;
Sempre serás lembrada (romance), 2000, Nova Fronteira, Rio de Janeiro.
Sinopse: O negro na sua luta, nas suas revoltas, e na sua redenção. Obra das mais bem trabalhadas, original no seu tema e no seu processo técnico e que representa o ponto culminante da produção do autor, na concatenação aliciante da narrativa, na modelar limpidez da escrita e na densa atmosfera de suspense e paixão. Embora se passe numa única noite, que compõe uma parábola perfeita entre o seu começo e o seu imprevisto desfecho, o livro abarca todo um largo período de vida brasileira entre 1838 e 1915, com seus clérigos, seus políticos, seus escritores, seus tipos populares. E tudo isso a se desenrolar com o fundo sonoro dos tambores rituais vindo da casa das negras-minas, tocados ao longo da grande noite pela nostalgia, a fé, a revolta e o júbilo dos antigos escravos. Partindo de um episódio imprevisto, o encontro de dois homens mortos, um negro com uma facada nas costas, e um branco assassinado por uma paulada dentro de um bar, numa velha noite de 1915, o autor imaginou cruzar duas linhas narrativas, de modo que ambas se fundissem, numa perfeita harmonia de planos, fluindo à feição do barco que desliza pela superfície do lago, tangido pela aragem matinal. Mais de quatrocentos personagens dão movimento ao romance, numa linha de interesse crescente.
Trecho do estudo: MARANTELLO: Imagens do Maranhão segundo Josué Montello
Nácia Lopes Noleto Sousa
Tambores de São Luís expressa a sociedade aristocrática e opressora do século XIX, caracterizando-se por um sistema de relações onde perpassa a noção de pessoa (senhor) exercendo domínio sobre a coisa (escravo) com o diferencial de que esta camada dominante é transposta para os romances com grande saudosismo, através de um tom memorial que os exalta, como quando faz referência ao enterro de Sousândrade (1985, p.604):
“Lembrava-se bem de seu enterro, com o ataúde envolto na bandeira do Estado – idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listras branca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representativa da unidade autônoma do Maranhão. Muita gente, na tarde de sol. À frente do cortejo, a carreta negra com frisos doirados, levando o esquife”.
Esta sociedade aristocrática também encontra-se representada em Noite Sobre Alcântara, onde Montello mostra a decadência da lavoura alcantarense em contraponto a um anterior período de prosperidade e o conseqüente empobrecimento dessa sociedade que dela subsistia.
Expressa também a importância dada à aquisição de títulos no Império, a valorização destes frente à sociedade, uma sociedade regida por uma relação de apadrinhamento de “poder econômico” transformado em uma espécie de poder político. Tal valorização encontra-se presente na passagem abaixo (1984, p.26):
“O senhor já soube que o General Deodoro fez comigo, major? Proclamou a República! E lá se foi meu título por águas abaixo! Logo agora, quando eu já estava na bica para ser agraciado! Agora me diga: quem é que me restitui as inúmeras intenções que eu tive com o Imperador, passando-lhe telegramas, mandando-lhes presentes, comunicando-lhe minhas obras de caridade? Quem? Esta só a mim acontece! Seu Deodoro não poderia esperar mais uns dias? Que lhe custava esperar? E para que a República? Ou então, se a república era mesmo inevitável, que esperasse a assinatura do meu decreto! Mas não: foi tudo a toque de caixa, e eu que fique aqui a ver navios! Como é que vou me apresentar aos meus conterrâneos?”.
Assim, transparece à obra de Montello um Maranhão aristocrático que de toda a opulência vivida se esvaece, uma sociedade que erigida em um lusitanismo é escravocrata e opressora.
Em suas obras encontramos citados grandes nomes, entre estes, Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis, Sousândrade, João Francisco Lisboa, Assim como médicos, bispos, padres, presidentes de província, professores, desembargadores, etc.
É o
Trecho do estudo: MARANTELLO: Imagens do Maranhão segundo Josué Montello
Nácia Lopes Noleto Sousa
Tambores de São Luís expressa a sociedade aristocrática e opressora do século XIX, caracterizando-se por um sistema de relações onde perpassa a noção de pessoa (senhor) exercendo domínio sobre a coisa (escravo) com o diferencial de que esta camada dominante é transposta para os romances com grande saudosismo, através de um tom memorial que os exalta, como quando faz referência ao enterro de Sousândrade (1985, p.604):
“Lembrava-se bem de seu enterro, com o ataúde envolto na bandeira do Estado – idealizada pelo próprio Sousândrade, com as listras branca, vermelha e negra, simbolizando a fusão das raças na formação do povo brasileiro, e mais a estrela branca sobre campo azul, representativa da unidade autônoma do Maranhão. Muita gente, na tarde de sol. À frente do cortejo, a carreta negra com frisos doirados, levando o esquife”.
Esta sociedade aristocrática também encontra-se representada em Noite Sobre Alcântara, onde Montello mostra a decadência da lavoura alcantarense em contraponto a um anterior período de prosperidade e o conseqüente empobrecimento dessa sociedade que dela subsistia.
Expressa também a importância dada à aquisição de títulos no Império, a valorização destes frente à sociedade, uma sociedade regida por uma relação de apadrinhamento de “poder econômico” transformado em uma espécie de poder político. Tal valorização encontra-se presente na passagem abaixo (1984, p.26):
“O senhor já soube que o General Deodoro fez comigo, major? Proclamou a República! E lá se foi meu título por águas abaixo! Logo agora, quando eu já estava na bica para ser agraciado! Agora me diga: quem é que me restitui as inúmeras intenções que eu tive com o Imperador, passando-lhe telegramas, mandando-lhes presentes, comunicando-lhe minhas obras de caridade? Quem? Esta só a mim acontece! Seu Deodoro não poderia esperar mais uns dias? Que lhe custava esperar? E para que a República? Ou então, se a república era mesmo inevitável, que esperasse a assinatura do meu decreto! Mas não: foi tudo a toque de caixa, e eu que fique aqui a ver navios! Como é que vou me apresentar aos meus conterrâneos?”.
Assim, transparece à obra de Montello um Maranhão aristocrático que de toda a opulência vivida se esvaece, uma sociedade que erigida em um lusitanismo é escravocrata e opressora.
Em suas obras encontramos citados grandes nomes, entre estes, Gonçalves Dias, Odorico Mendes, Sotero dos Reis, Sousândrade, João Francisco Lisboa, Assim como médicos, bispos, padres, presidentes de província, professores, desembargadores, etc.
É o Maranhão narrado por entre becos e ruas famosas, como a Rua dos Afogados, Rua do Oiteiro, Rua do Passeio, Rua do Mocambo, Rua Grande. É a São Luís de beiral no telhado, de ruas longas e estreitas. São os Largos, o do Carmo, o do Santiago, o do Desterro, até mesmo o Cemitério do Gavião em suas obras é lembrado. Lembra ainda o Portinho, a Praia do Caju e o Cais da Sagração, as matracas do Caminho Grande, do Anil e da Maioba por cima das cantigas de bumba-meu-boi. O Liceu Maranhense também ganha uma atenção especial. É um passado/presente que nestas obras se constitui.Um passado que Montello traz com o uso da memória, de forma a fazê-lo presente.
É na construção deste passado/presente que Montello ergue sua representação sobre o Maranhão.
Para tanto, trabalha espaços distintos, desde São Luís, a Alcântara, até às fazendas do interior. Neste universo, tem-se representado sobre um imenso saudosismo a época de grande prosperidade maranhense de até meados do século XIX e, em contraponto a esta, um Maranhão decadente que tenta reerguer-se já no século XX composto por uma sociedade que se vê incipiente, impossibilitada de exibir-se com a riqueza de outrora.
De aristocrática, opulenta e opressora, torna-se esta sociedade melancólica. A Alcântara de tantos sobradões e fachadas torna-se propícia a assombrações, já que entre os vazios das ruas restam apenas os fantasmas dos antigos barões e escravos.
Tem-se assim, trabalhada a saga da aristocracia maranhense envolta da idéia de decadência que perpassa o contexto de Noite Sobre Alcântara.
Montello lembra ainda o vazio da Praia Grande, que mostra as transformações sofridas pela cidade, estas transformações do espaço lembrada em Cais da Sagração dão um significado à história, é pois a memória recompondo a paisagem de São Luís.
A saga maranhense construída sobre a visão de mundo de Montello, não se limita à decadência da aristocracia maranhense, mas também dedica-se à construção do imaginário sobre o negro em sua luta contra a opressão desta aristocracia encontrado em Tambores de São Luís.
Assim, lembram-se os instrumentos repressores, o feitor, a chibata, a palmatória e ainda as proibições de festas e fandangos, até mesmo a forca na Praça da Alegria. A opressão versus luta pela liberdade, expressa a escravidão no Marantello.
Neste imaginário, a dependência da aristocracia maranhense em relação ao trabalho escravo não se esconde, tendo projetado nas linhas destes romances toda a sua ruína após a abolição. São as fazendas empobrecidas transformadas em taperas com antigos barões e viscondes a desfalecer-se ao não suportar desfazer-se de seus últimos bens.
Não podemos deixar de ressaltar também as inúmeras referências que Montello dedica a Donana Jansen que é transpostas para seus livros cercadas pelas lendas que até o presente envolvem sua pessoa neste Maranhão. Tal representação construída em torno desta comerciante e latifundiária deixa transparecer a sociedade aristocrática e cruel que se impunha.
Montello encontra-se ainda atrelado à literatura tradicional, como pudemos demonstrar no decorrer deste trabalho, portador da ideologia da decadência, constrói o enredo de Noite Sobre Alcântara. Traz também consigo outras visões que estará norteando sua visão de mundo, a exemplo de Meireles e Viveiros, seja na forma de ver o Maranhão, a sociedade aristocrática nele presente, seja em suas contextualizações, elitizações e dicotomias.
Utilizando-se de todo o seu saudosismo romântico, Montello constrói imagens deste Maranhão, de opulento a decadente. Sobrevive o Maranhão entre reerguimentos e falências, glórias e ruínas. Fica então a memória como expressão de um desejo de retorno ao passado de glórias, efemérides e feitos heróicos.
Trecho:OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
Capítulo 1
Josué Montello
Até ali os Tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras.
No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata.
- Faça favor...
Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:
- É o convite para o meu próximo espetáculo.
- Outra vez A queda da Bandeira?
- É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda.
Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites.
- De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio.
Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão.
- Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios.
Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.
O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que, antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz do primeiro filho.
- Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também esteja lá, para receber o seu trineto.
- Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o meio da noite.
E antes do Tião sair:
- Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos.
- Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião.
E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a criada que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá). Damião se vestiu devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de balanço da varanda, antes de deixar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito.
Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de um carro, só iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite.
Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, experimentou de repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, ao mesmo tempo que procurava convencer-se de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos.
- Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência.
Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranqüilizou Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resvalou para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia rolou pelo meio-fio.
Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau presságio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara que seu parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da natureza, sob a vigilância experiente da Comadre Ludovina.
- E a Comadre Ludovina já está lá.
Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das Minas. Quase no mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambores, que iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a seguinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na vertigem do compasso. E só esse baticum frenético se impunha agora, apagando o som dos outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, dispersando-o na grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade.
Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada de novo, na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro e viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza Maria. E ia dar o primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros, compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse.
Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, depois de ouvir os tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro, filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores.
A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro, com grades de ferro rendilhadas, vidros coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontava adiante, curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro.
No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão a se fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira pendurada, que arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também retirou depressa a cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um osso na boca.
Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma carruagem dispara pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguindo a toda brida na direção do Largo do Quartel. Como demore passar, ele se volta para trás, e não vê: na rua deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo tempo que o piano se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o baticum dos tambores, na Casa-Grande das Minas.
Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava uma volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça, com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras, despencando ladeia abaixo.
- Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da velha. Quem morreu quer sossego.
E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os cigarrinhos da noite, para esperar o sono...
E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho da Rua da Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante de louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar, intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos.
Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo.
Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na claridade do dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada.
Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a rir, adivinhando o que se passava.
Dias e dias, já fazia alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com cara da velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía.
Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros:
- De quem vocês são escravos?
- De Donana Jansen.
Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam as rótulas, nas janelas dos sobrados, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na rua, em chinelos, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça.
- E esse aí? - quis saber Damião.
- Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação.
E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro:
- Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem!
Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande, pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivas, quando viu entreaberta a porta do botequim.
Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua deserta, varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho.
Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro do balcão, ninguém.
Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava que o atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado, caído de bruços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do coração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em que tinha caído.
Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão. Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente, com o busto maio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele, muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo, lhe tinha vendido um maço de cigarros.
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Fonte: Montello, Josué. Os tambores de São Luís: romance. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Cap. 1. p. 11-20.Maranhão narrado por entre becos e ruas famosas, como a Rua dos Afogados, Rua do Oiteiro, Rua do Passeio, Rua do Mocambo, Rua Grande. É a São Luís de beiral no telhado, de ruas longas e estreitas. São os Largos, o do Carmo, o do Santiago, o do Desterro, até mesmo o Cemitério do Gavião em suas obras é lembrado. Lembra ainda o Portinho, a Praia do Caju e o Cais da Sagração, as matracas do Caminho Grande, do Anil e da Maioba por cima das cantigas de bumba-meu-boi. O Liceu Maranhense também ganha uma atenção especial. É um passado/presente que nestas obras se constitui.Um passado que Montello traz com o uso da memória, de forma a fazê-lo presente.
É na construção deste passado/presente que Montello ergue sua representação sobre o Maranhão.
Para tanto, trabalha espaços distintos, desde São Luís, a Alcântara, até às fazendas do interior. Neste universo, tem-se representado sobre um imenso saudosismo a época de grande prosperidade maranhense de até meados do século XIX e, em contraponto a esta, um Maranhão decadente que tenta reerguer-se já no século XX composto por uma sociedade que se vê incipiente, impossibilitada de exibir-se com a riqueza de outrora.
De aristocrática, opulenta e opressora, torna-se esta sociedade melancólica. A Alcântara de tantos sobradões e fachadas torna-se propícia a assombrações, já que entre os vazios das ruas restam apenas os fantasmas dos antigos barões e escravos.
Tem-se assim, trabalhada a saga da aristocracia maranhense envolta da idéia de decadência que perpassa o contexto de Noite Sobre Alcântara.
Montello lembra ainda o vazio da Praia Grande, que mostra as transformações sofridas pela cidade, estas transformações do espaço lembrada em Cais da Sagração dão um significado à história, é pois a memória recompondo a paisagem de São Luís.
A saga maranhense construída sobre a visão de mundo de Montello, não se limita à decadência da aristocracia maranhense, mas também dedica-se à construção do imaginário sobre o negro em sua luta contra a opressão desta aristocracia encontrado em Tambores de São Luís.
Assim, lembram-se os instrumentos repressores, o feitor, a chibata, a palmatória e ainda as proibições de festas e fandangos, até mesmo a forca na Praça da Alegria. A opressão versus luta pela liberdade, expressa a escravidão no Marantello.
Neste imaginário, a dependência da aristocracia maranhense em relação ao trabalho escravo não se esconde, tendo projetado nas linhas destes romances toda a sua ruína após a abolição. São as fazendas empobrecidas transformadas em taperas com antigos barões e viscondes a desfalecer-se ao não suportar desfazer-se de seus últimos bens.
Não podemos deixar de ressaltar também as inúmeras referências que Montello dedica a
Donana Jansen que é transpostas para seus livros cercadas pelas lendas que até o presente envolvem sua pessoa neste Maranhão. Tal representação construída em torno desta comerciante e latifundiária deixa transparecer a sociedade aristocrática e cruel que se impunha.
Montello encontra-se ainda atrelado à literatura tradicional, como pudemos demonstrar no decorrer deste trabalho, portador da ideologia da decadência, constrói o enredo de Noite Sobre Alcântara. Traz também consigo outras visões que estará norteando sua visão de mundo, a exemplo de Meireles e Viveiros, seja na forma de ver o Maranhão, a sociedade aristocrática nele presente, seja em suas contextualizações, elitizações e dicotomias.
Utilizando-se de todo o seu saudosismo romântico, Montello constrói imagens deste Maranhão, de opulento a decadente. Sobrevive o Maranhão entre reerguimentos e falências, glórias e ruínas. Fica então a memória como expressão de um desejo de retorno ao passado de glórias, efemérides e feitos heróicos.
Trecho:OS TAMBORES DE SÃO LUÍS
Capítulo 1
Josué Montello
Até ali os Tambores da Casa-Grande das Minas tinham seguido seus passos, e ele via ainda os três tamboreiros, no canto esquerdo da varanda, rufando forte os seus instrumentos rituais, com o acompanhamento dos ogãs e das cabaças, enquanto a nochê Andreza Maria deixava cair o xale para os antebraços, recebendo Toi-Zamadone, o dono do lugar.
Por vezes, no seu passo firme pela calçada deserta, deixava de ouvir o tantantã dos tambores, calados de repente no silêncio da noite, com o vento que amainava ou mudava de direção. Daí a pouco Damião tornava a ouvi-los, trazidos por uma rajada mais fresca, e outra vez a imagem da nochê, cercada pelas noviches vestidas de branco, lhe refluía à consciência, magra, direita, porte de rainha, a cabeça começando a branquear.
Fora ela que viera buscá-lo, à entrada do querebetã. A intenção dele era apenas ouvir um pouco os tambores e olhar as danças, sentado no comprido banco da varanda, de rosto voltado para o terreiro pontilhado de velas. Já o banco estava repleto. Muitas pessoas tinham sentado no chão de terra batida, com as mãos entrelaçadas em redor dos joelhos; outras permaneciam de pé, recostadas contra a parede. Mas a nochê, que o trouxera pela mão, fez sair do banco um dos assistentes, e ele ali se acomodou, em posição realmente privilegiada, podendo ver de perto os tambores tocando e as noviches dançando, por entre o tinir de ferro dos ogãs e o chocalhar das cabaças.
Vez por outra sentia necessidade de ir ali, levado por invencível ansiedade nostálgica, que ele próprio, com toda a agudeza de sua inteligência superior, não saberia definir ou explicar. O certo é que, ouvindo bater os tambores rituais, como que se reintegrava no mundo mágico de sua progênie africana, enquanto se lhe alastrava pela consciência uma sensação nova de paz, que mergulhava na mais profunda essência de seu ser. Dali saía misteriosamente apaziguado, e era mais leve o seu corpo e mais suave o seu dia, qual se voltasse a lhe ser propício o vodum que acompanha na Terra os passos de cada negro.
Embora só houvesse no céu uma fatia de lua nova, por cima da igreja de São Pantaleão, uma tênue claridade violácea descia sobre a cidade adormecida, com a multidão de estrelas que faiscavam na noite de estio. Em cada esquina, a sentinela de um lampião, com seu bico de gás chiante. Todas as casas fechadas. Perto, para os lados da Rua da Inveja, o apressado rolar de um carro, com o ruído do cavalo a galope nas pedras do calçamento. E sempre o baticum dos tambores, ora fugindo, ora voltando, sem perder a cadência frenética, muito mais ligeira que o retinir das ferraduras.
No canto da Rua do Passeio com a Rua do Mocambo, antes de passar para a calçada fronteira, Damião parou um momento, batido em cheio pela claridade do gás.
Resguardado do sereno pelo chapéu de feltro inglês, presente do Governador Luís Domingues no último Natal, parecia mais comprido, a espinha dorsal direita, o corpo seco e rijo, os ombros altos. Aos oitenta anos, dava a impressão de ter sessenta, ou talvez menos, com muita luz nos olhos, o passo seguro, a cabeça levantada. Até o começo do século, não dispensava a bengala de castão de prata com que entrou pela primeira vez no sobrado do Foro, sobraçando a sua pasta de solicitador, para defender outro negro. Agora, trajava com simplicidade, muito limpo, a barba escanhoada, o paletó abotoado acima do peito, um alfinete de ouro junto ao laço da gravata.
- Faça favor...
Damião assustou-se com a voz rouca que lhe vinha por trás do ombro direito, do lado da Rua do Mocambo. Não tinha sentido rumor de passos. E deu de frente com o Sátiro Cardoso, pequenino, enxuto, metido na sua sovada casaca de mágico, o colarinho alto, o rosto encovado, bigode, nos negros olhos uma faísca de loucura, e que logo lhe disse, com um pedaço de papel impresso na ponta dos dedos:
- É o convite para o meu próximo espetáculo.
- Outra vez A queda da Bandeira?
- É. O pessoal pede sempre. E o público é quem manda.
Damião quis ainda saber por que o velho mágico preferia aquela hora da noite, com as casas fechadas, para distribuir os seus convites.
- De dia - redargüiu ele, dando-lhe outro convite - os moleques vêm atrás de mim, me chamando de Troíra. Chegam a atiçar cachorros para me morder. De noite é mais calmo: os moleques estão dormindo.
E lá se foi, Rua do Mocambo abaixo, a enfiar o papelucho por baixo das portas, sem ruído, apenas roçando o chão da calçada com seu passo macio.
Já fazia alguns anos que Damião vira aparecer na cidade aquela figura caricata, debaixo de uma cartola preta, casaca, sapatos cambados, a andar acima e abaixo, com uma pasta de couro, também preta, e apresentando-se no Largo do Carmo, no Palácio do Governo, na redação dos jornais, no Liceu, no Paço Episcopal, e também à porta das igrejas, nas missas dominicais e nos casamentos, como - o Ilusor Maranhense. Dias depois, apenas por curiosidade, tinha ido assistir, no Teatro São Luís, ao seu primeiro espetáculo, que daí em diante se repetia todos os anos: a caprichada mágica intitulada A queda da Bandeira. Sátiro subia uma escada, até o último degrau, bem no centro do palco, e dali, com uma bandeira desfraldada, recitava comprido bestialógico, cheio de palavras abstrusas, numa suposta língua de sua invenção, o gramazino, da qual proporcionava antes um pano de amostra com esta explicação: "O A do alfabeto gramazino é a mesma coisa que o A do alfabeto em português, com a diferença de que se escreve de cabeça para baixo e tem o som de bé." Em seguida, enrolava-se na bandeira. Um tiro de pólvora seca estrondava, assustando a platéia. E eis que o mágico se atirava lá do alto, em arremesso, como se fosse voar, e caía pesadamente cá embaixo, nas tábuas do chão.
- Bis, bis - gritavam-lhe da torrinha.
E Sátiro repetiu o monólogo, uma, duas, várias vezes, com o mesmo tiro e a mesma queda, até que Damião, compadecido de sua insânia, começou a reclamar - Chega! Chega! - e o mágico afinal se retirou, manquejando, uma das mãos no quadril machucado, enquanto o pano do teatro vinha descendo, debaixo de gritos e assobios.
Antes que ele desaparecesse, sempre a enfiar o impresso por baixo das portas, Damião mudou de calçada, ainda ouvindo o baticum dos tambores. Para trás, em linha reta, ficava o Cemitério do Gavião, com o Padre Policarpo, a Genoveva Pia, a Aparecida, o Dr. Celso de Magalhães, a Dona Bembém, a Dona Páscoa, a Dona Calu, o amigo Barão, cada qual no seu jazigo ou na sua cova rasa, na santa paz do Senhor. À frente, era o Largo do Quartel; em seguida, torcendo para a direita, a Rua das Hortas, o Largo da Cadeia, a Praia do Jenipapeiro e por fim a Gamboa, com a casa de sua bisneta, num cômoro verde que escorregava para o mar.
O próprio Tião, no mesmo carro em que fora buscar a parteira, viera dar-lhe a notícia de que, antes do anoitecer, a Biá começara a sentir fisgadas fortes, no alvoroço de dar à luz do primeiro filho.
- Deixei sua bisneta gemendo. A casa já está cheia de parentes. É bom que o senhor também esteja lá, para receber o seu trineto.
- Sim, irei - concordara. - Mas não já. O primeiro parto dá muito rebate falso. Isso é coisa para o meio da noite.
E antes do Tião sair:
- Eu sou do tempo em que os mais moços esperavam pelos mais velhos.
- Hoje, tá tudo mudando - emendou o Tião.
E como o tinham deixado só, no rebuliço do primeiro trineto da família, apenas com a criada que lhe servira apressadamente o jantar (e também se fora para a casa da Biá). Damião se vestiu devagar, sabendo que não adiantava ter pressa, e ainda passou por um cochilo, na cadeira de balanço da varanda, antes de deixar a casa entregue ao Veludo, que andava na fase de latir e correr, próprio do cio insatisfeito.
Levara bom tempo na esquina da Rua das Cajazeiras, a ver se aparecia um carro que o transportasse à Gamboa. Terminara reconhecendo que, se dependesse mesmo de um carro, só iria conhecer o trineto depois de grande. O jeito era ir a pé, aproveitando a fresca da noite.
Ao entrar na Rua de São Pantaleão, já distante do Cemitério dos Ingleses, experimentou de repente uma sensação de frio, que lhe desceu da cabeça aos pés, como se um sopro gelado o tivesse apanhado por trás, em toda a extensão do corpo. Respirou fundo, e prosseguiu no seu caminho, sem aumentar nem diminuir o passo, ao mesmo tempo que procurava convencer-se de que a rajada viera da Rua da Cotovia. Parou adiante, apalpando os bolsos da calça, à procura do maço de cigarros. Tinha trazido os cigarros, mas esquecera a caixa de fósforos.
- Velho é assim mesmo: quando se lembra de uma coisa, esquece outra. Paciência.
Senhor de si, voltou a caminhar, procurando espairecer os olhos no ermo da rua longa. De novo o vento soprou, agora mais forte, como se o tempo fosse mudar. O céu limpo tranqüilizou Damião. Uma janela bateu; por cima de um muro, estalou um galho de árvore, que resvalou para a calçada; adiante, uma vidraça partiu, no bater violento de outra janela; uma lata vazia rolou pelo meio-fio.
Antes de alcançar o fim do quarteirão, ele teve a impressão de que algo estranho, que se associava à sua pessoa, estaria ocorrendo naquele momento. Tentou sacudir de si a impressão aborrecida, e esta retornou, insidiosa, opressiva, com a teimosia de um mau presságio. Pensou na Biá. Não, não seria nada com ela: o médico tinha-a visto pela manhã, e assegurara que seu parto seria normal. Tudo bem, e a criança no seu lugar; era só esperar agora pela reação da natureza, sob a vigilância experiente da Comadre Ludovina.
- E a Comadre Ludovina já está lá.
Foi então que escutou o romper dos tambores, ali perto, na Casa-Grande das Minas. Quase no mesmo instante tiniram os ogãs e sacudiram as cabaças, mas não suplantaram os tambores, que iam acelerando o tantantã nervoso que obriga as noviches a girarem sobre si mesmas. Dir-se-ia que uma batida queria alcançar a seguinte, sem que um tamboreiro destoasse dos outros na vertigem do compasso. E só esse baticum frenético se impunha agora, apagando o som dos outros instrumentos, e também só ele o vento levava, rua abaixo e rua acima, dispersando-o na grande noite de agosto que se fechava sobre a cidade.
Depois de passar para o outro lado da rua, Damião deu consigo na calçada do querebetã, e ali retardou a caminhada, querendo entrar. Era uma casa baixa, de beiral saliente, caiada de novo, na esquina do Beco das Crioulas, com janelas de rótulas e porta de duas folhas, sobre a Rua de São Pantaleão. Só uma banda da porta estava aberta. Parado na soleira, ele olhou para dentro e viu o corredor e a varanda já repletos, com as noviches dançando em volta da nochê Andreza Maria. E ia dar o primeiro passo no corredor, quando a nochê subiu o xale para os ombros, compelindo os tamboreiros a uma pausa brusca, logo interrompida por um bater mais forte, em outro ritmo, e veio caminhando para a porta, no espaço que se ia abrindo para lhe dar passagem. Damião tinha dado outro passo, e ali esperou que ela o levasse.
Quando saiu, ele não saberia dizer ao certo quanto tempo ali permanecera. Vinte minutos? Meia hora? Ou mais ainda? Mais ainda, certamente. O importante é que, depois de ouvir os tamboreiros e assistir às danças rituais, se sentia preparado para ir ao encontro de seu trineto. Sentado no banco, a olhar as noviches dançando rodeadas de velas, era outra vez o negro puro, filho de sua raça, em contato com as remotas raízes africanas. E assim entrou na Rua do Passeio, descendo pelo Beco das Crioulas, sempre acompanhado pelo tantantã dos tambores.
A Rua do Passeio, longa, retilínea, parecia não ter fim. Casas de azulejos de um lado e de outro, com grades de ferro rendilhadas, vidros coloridos no leque das janelas, um ou outro portal de pedra. Sem relógio para ver as horas (o seu andava na loja do Maneco Ourives, para limpeza geral da máquina, já fazia uma semana), era debalde que Damião consultava de vez em quando a posição da lua, que ora se escondia por trás dos mirantes mais altos, ora repontava adiante, curva e pontuda como um chavelho de bumba-meu-boi entrando no terreiro.
No canto da Rua de Santana, o bico de gás do lampião estava prestes a apagar, reduzido a uma chamazinha débil, que se encolhia no bocal empoeirado, com medo da noite, a escuridão a se fechar à sua volta. E outra vez Damião se assustou, agora com a zoada de uma lata de lixo, que ia sendo arrastada nas pedras do chão. Era um cão magro, só pele e osso, com uma pata traseira pendurada, que arrastava com o focinho, enquanto o lixo se esparramava na calçada escura. Ao pressentir os passos de Damião, já bem perto, o cão assustou-se também retirou depressa a cabeça de dentro da lata, e correu para o outro lado da rua, capengando, com um osso na boca.
Um pouco além, Damião ouve o som de um piano mal tocado, para os lados da Rua do Oiteiro. E enquanto apura a orelha, tentando identificar os compassos da valsa, uma carruagem dispara pela Rua do Passeio, à altura do Hospital Português, e é tão próximo o tropel dos cavalos e o estrondo das rodas, que ele fica esperando que ela passe ao seu lado, seguindo a toda brida na direção do Largo do Quartel. Como demore passar, ele se volta para trás, e não vê: na rua deserta, só o cão rói o seu osso, à luz de outro lampião. A carruagem dobrou a Rua do Mocambo, e seu rumor se afasta no sentido da Praça da Alegria, ao mesmo tempo que o piano se cala, e volta a ressoar, um pouco mais distante, o baticum dos tambores, na Casa-Grande das Minas.
Damião se lembrou que Donana Jansen saía de seu túmulo, nas noites de sexta-feira, e dava uma volta comprida pela cidade, numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos sem cabeça, com um esqueleto na boléia brandindo o chicote. Só se ouvia o ruído das rodas e das ferraduras, despencando ladeia abaixo.
- Bobagem - reagiu Damião. - História inventada pelos inimigos políticos da velha. Quem morreu quer sossego.
E apalpando novamente o bolso da calça, tirou fora um cigarro, que deixou no canto da boca. Mais além, talvez ainda estivesse aberto o botequim da esquina da Rua Grande. Como fora esquecer de trazer a caixa de fósforos? Logo ele que, depois de velho, não dispensava os cigarrinhos da noite, para esperar o sono...
E nisto se viu saindo do quarto da Maria Quitéria, nos baixos de um sobradinho da Rua da Estrela, já querendo amanhecer. Na subida da Rua de Nazaré, estranhou uma zoada ressoante de louça quebrada, a poucos passos, adiante da escadaria da Rua do Giz. Retardou o andar, intrigado. Era uma louça atrás da outra, e muitas a um só tempo, debaixo das mesmas pancadas firmes, que faziam voar para todos os lados os cacos partidos.
Do patamar da escadaria, estendeu o olhar para baixo.
Ao pé do último socalco, à porta do sobrado do Comendador Antônio Meireles, na claridade do dia que ia rompendo, um bando de negros em ação, cada qual com seu porrete de pau-roxo, quebrava depressa pilhas e pilhas de vasos de louça empilhados na calçada.
Damião desceu os socalcos quase a correr, e antes de chegar cá embaixo começou a rir, adivinhando o que se passava.
Dias e dias, já fazia alguns meses, era o assunto de São Luís inteira, nas rodas do Largo do Carmo, nas conversas do Passeio Público, no cochicho das sacristias. Inimigo de Donana Jansen, com quem vivia às turras, o Comendador Meireles tinha mandado preparar na Inglaterra, para vendê-los quase de graça, um milheiro de belos penicos de louça, com cara da velha no fundo do vaso. Donana Jansen soube do fato e suportou com paciência o riso da cidade. Não reagiu logo: deu tempo ao tempo, enquanto ia mandando comprar, aos dois, aos três, às dezenas, na loja do Comendador, os penicos com seu retrato, até ter a certeza de que, agora, sim, só ela os possuía.
Apenas por perguntar, mal contendo o frouxo de riso, Damião perguntou a um dos negros:
- De quem vocês são escravos?
- De Donana Jansen.
Eram mais de trinta negros, todos fortes, espadaúdos, e iam quebrando os urinóis com uma fúria divertida, repetindo as cacetadas rijas, que desfaziam a louça apenas com uma pancada. A vizinhança ia despertando com a zoadaria estranha. Caras estremunhadas entreabriam as rótulas, nas janelas dos sobrados, e já algumas pessoas se debruçavam das sacadas, enquanto outras, na rua, em chinelos, no chambre de dormir, riam alto, vendo as matanças dos penicos. Um cheiro insuportável de mijo podre desprendia-se de um vaso à parte, por sinal que maior que os outros, quase o triplo, e coberto com uma tampa também de louça.
- E esse aí? - quis saber Damião.
- Minha sinhá deu ordem pra despejar o mijo dele na cabeça do Comendador, se ele aparecer pra tomar satisfação.
E sem interromper as pancadas seguras, o negro abriu para Damião a dentadura farta, que lhe encheu a boca feliz, rematando com este comentário, entre um penico e outro:
- Donana Jansen não é gente. Tou cansado de dizer. Quem se mete com ela tem sarna muita pra se coçar. Ora se tem!
Ainda com o cigarro apagado no canto da boca, Damião aproximou-se da Rua Grande, pensando onde ia encontrar, ali perto, uma caixa de fósforos para comprar. E não tinha chegado à esquina, defronte de um casarão de altas janelas ogivas, quando viu entreaberta a porta do botequim.
Sempre o ruído dos tambores seguindo-lhe os passos, com a lua nova a se esconder e a brilhar, na faiscação do céu estrelado. E agora o assobio do vento, que disparava na rua deserta, varrendo as calçadas, para se desfazer no giro doido de um remoinho.
Dentro do botequim, a única luz era a chama de um candeeiro a óleo, suspenso da parede esfumaçada por um suporte de metal. Essa luz mortiça, por trás do bocal enegrecido, caía por cima do balcão, mal dando para clarear uma parte da saleta pontilhada de mesas vazias. Dentro do balcão, ninguém.
Damião subiu o degrau da porta, avançou uns passos, bateu palmas. Enquanto esperava que o atendessem, olhou em volta, aproximando-se do balcão. E foi aí que viu por terra, entre as duas primeiras mesas à sua direita, o vulto de um negro magro, comprido, bem trajado, caído de bruços numa poça de sangue, com uma facada nas costas, à altura do coração. Parado, ficou um momento a fitá-lo, de olhos crescidos. Não lhe podia ver o rosto, só a nuca e uma parte do pescoço. Pela roupa, era gente de fora. Empurrou-o de leve, para ver se lhe restava um alento de vida, mas o corpo permaneceu imóvel, com o busto achatando o braço direito, na posição em que tinha caído.
Na claridade que ia esmorecendo, Damião olhou em volta, de sobrancelhas travadas. Numa das mesas, mais para o fundo da saleta, acumulavam-se garrafas de bebida, quase todas tombadas sobre o tampo de mármore, juntamente com um copo quebrado e um cinzeiro atulhado de cinza e pontas de cigarro. Cacos de vidro rangeram debaixo da sola de suas botinas, assim que deu outro passo, na direção do candeeiro. E ali, com uma suspeita, espiou para dentro do balcão. Outro morto jazia no ladrilho do piso, com a cabeça fendida por uma paulada. Estava de frente, com o busto maio apoiado no ângulo entre o balcão e a prateleira. E a luz que descia sobre ele, muito tênue, levemente avermelhada, permitiu que Damião prontamente identificasse, pelo rosto coberto de sangue pisado, o senhor gordo, de bigode em ponta, que, dias antes, ali mesmo, lhe tinha vendido um maço de cigarros.
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Fonte: Montello, Josué. Os tambores de São Luís: romance. 5ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985. Cap. 1. p. 11-20.