Leia 'A violência que produz violência' do juiz Aureliano Neto
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- Janeiro 20º, 2017
O primeiro: Em 16 de outubro de 2001, Augusto Sátiro de Jesus, 45 anos de idade, empregado de uma rede de restaurantes há 18 meses, foi detido em flagrante delito com uma coxa e sobrecoxa de frango, no interior de sua mochila, com prazo de validade vencido. Sem dinheiro para comprar a comida, segundo a suas declarações, correu o risco de passar pelo crivo da vigilância de seu empregador com o produto do “crime”, avaliado pela polícia em R$ 0,90. Foi preso por furto qualificado (por abuso de confiança), e, sem assistência de advogado, Augusto permaneceria cerca de 16 dias numa cela de 12 metros quadrados, em companhia de outros 25 homens, num dos distritos policiais da cidade de São Paulo.
O segundo: Duas jovens advogadas paulistanas foram procuradas por um homem negro, acompanhado de uma mulher e de uma criança de colo, numa situação jurídica inusitada, que poderia fazer parte de uma narrativa fantástica, digna de Gabriel Garcia Márquez ou Allan Poe. Condenado à pena de prisão, recebera autorização para passar o fim de semana com a família. Por motivo de doença, apresentara-se ao presídio com atraso. Foi simplesmente impedido de entrar… O funcionário da recepção fechou-lhe arbitrariamente as portas da prisão, deixando-o de fora; portanto, livre. Perplexo e ameaçado de ser considerado fugitivo e, assim, ter o seu prontuário maculado e ter abalado o seu bom comportamento, recorreu às advogadas, que, acostumadas a fazerem pedidos de liberdade, viram-se na insólita contingência que requerer ao juiz a sua prisão, o que, evidentemente, foi deferida. Dias depois, as advogadas receberam um telefonema de agradecimento, quando souberam que o preso, como retaliação, fora punido com isolamento.
Essas violências praticadas contra os presos são tão antigas, no Brasil e no mundo inteiro, quanto à origem da prisão, isso a partir do momento em que passou a ser adotada como pena, em substituição às sanções de natureza corporal, como a pena de morte, o suplício, o degredo, o açoite, a amputação de membros, galés, trabalhos forçados, confisco de bens. Encarcerar, de início, era o meio, e não o fim da punição. Não havia, por isso mesmo, preocupação com a qualidade da prisão e com a saúde do preso, já que os réus não eram condenados à perda da liberdade. Eram mantidos aprisionados, para aguardar a aplicação de outras punições que não implicavam o cerceamento da liberdade.Só no século XVIII, a pena de prisão sofre alteração quanto ao seu critério de aplicação. Causas: necessidade de aproveitamento do contingente de pessoas economicamente marginalizadas, o racionalismo político e o declínio moral da pena de morte. Desses fatores decorre a alternativa da supressão da liberdade do apenado por tempo determinado. Torna-se a prisão a essência do sistema punitivo, com a finalidade não só de isolar o preso do convívio social, mas recuperá-lo. Como consequência, o cárcere, nessa concepção, deixa de ser um depósito infecto de infratores para assumir a finalidade de um lugar público, regulamentado, higiênico, porém capaz de prevenir o delito e ressocializar aquele que o comete. Essa seria a sua finalidade.
Sustentam os penalistas que a origem da prisão emana das celas eclesiásticas, instituídas pela Igreja Católica, com o fim de punir os religiosos infratores, e ainda das casas de correção do século XVI, na Inglaterra e na Holanda. As celas eclesiásticas tinham a finalidade de estimular as reflexões em torno do pecado, aproximando o pecador de Deus. Em 1764, Cesare Beccaria publica Dos Delitos e das Penas e denuncia as atrocidades das prisões, que desumanizavam, ainda mais, o apenado. E ensina que “o fim da pena não é atormentar e afligir um ser sensível”. ”Os castigos, para ele, têm por fim único impedir o culpado de ser nocivo futuramente à sociedade e desviar seus concidadãos da sendo do crime”. Em síntese: a pena deve proporcional ao delito.
Tanto os países pobres como os ricos vivem graves problemas no seu sistema carcerário, em razão de terem elegido a prisão como a alternativa prioritária de redução da criminalidade. Quando há crises econômica, política, ética, que elevam a criminalidade, o remédio é recorrer-se à punição mais severa: pena mais longa, legitimação do esquadrão da morte, pena de morte, ou redução da responsabilidade penal para 16 ou 14 anos de idade, sob os fundamentos mais irracionais. Os mais radicais, adeptos da lei e da ordem, buscam a solução na mudança do regime, pugnando pelo advento da ditadura castrense.
Darcy Ribeiro, lembrado pela Ministra Cármen Lúcia, disse numa conferência, em 1982, que se os governadores não construíssem escolas, em 20 anos faltaria dinheiro para construir presídios. Vive-se esse drama, profetizado por Darcy. E vive-se mais a tragédia dos assassinatos brutais, em presídios e fora deles. Pior: ainda temos que suportar o presidente golpista da República dizer que a chacina anunciada foi um “acidente pavoroso”, e um dos seus diletos assessores, rotulado de secretário da juventude, afirmar com doentio sarcasmo: “Tinha de ter uma chacina por semana. Eu sou coxinha sobre isso.” Com esses porta-vozes da insensibilidade e do caos, a violência carcerária continuará a produzir mais violência, pois a prisão perdeu a sua finalidade.