segunda-feira, 21 de maio de 2012


O poder dos ebós Estigmatizados na sociedade, os chamados ‘bozós’ têm seu uso associado unicamente à bruxaria

18.05.12

fotos: divulgação
Um grande ‘agdá’ de barro, repleto de comida, farofa de dendê, galo morto, cachaça, velas e charutos, colocado numa movimentada encruzilhada da Barra, transformou a vida da dona de casa Marli*. Ela acredita que bozós foram responsáveis pelo fim de um relacionamento amoroso. Não acreditava "nestas coisas", mas depois do que viveu diz não ter mais como duvidar. Passou pelo bozó em plena luz do dia e, chegando na portaria do prédio em que morava, lembra que teve um sentimento horrível, uma vontade de se jogar embaixo de um ônibus. Chegou em casa chorando e teve o desespero acalentado pelo marido. Hoje, ela tem explicação para a angústia, aparentemente sem motivo, que sentiu.

Em menos de um mês do ocorrido, foi surpreendida com um pedido de separação. "Durante 15 anos, eu era uma pessoa magnífica: a melhor dona de casa, melhor mãe, melhor mulher do mundo e, de uma hora para outra, tudo mudou radicalmente", recorda ainda com indignação. A justificativa para o divórcio ele não escondeu: estava apaixonado por outra mulher. Uma colega de trabalho e também mãe-de-santo. "Sempre soube do interesse dela porque ele me contava dos convites para jantar, das perguntas sobre nosso relacionamento. Ele falava da paquera com deboche. Dizia que ela era feia, preta e gorda e eu confiava tanto no nosso amor que nunca ia imaginar isso".

Inconformada com a situação, Marli* chegou a procurar ajuda em terreiros. O líder da casa a que recorreu revelou que três bozós tinham sido feitos contra ela e outros estavam sendo preparados. "Disseram que o trabalho era para ele esquecer o filho também. Saí de lá rindo porque, para mim, isso ainda era impossível". Mesmo após a separação, Osmar* continuava visitando o filho diariamente. "Ele era apaixonado pelo menino. A criança não podia ter uma gripe que ele ficava louco", recorda.

A última vez que Osmar viu o filho ele ainda era um bebê. Hoje, Ítalo* tem 15 anos e a tristeza de não ter conhecido o pai. "Ele sumiu, desapareceu. Não procura o menino para nada. Não sabe se está vivo ou morto, se é gordo ou magro". A experiência transformou a vida de Marli. Mãe solteira desde então, ela enfrenta dificuldades, inclusive financeiras, para criar o único filho. "Acredito que bozós existem e têm poder para o mal, para o bem, não. Mas, pelo menos no meu caso, o feitiço virou contra o feiticeiro. Ela morreu há dois anos, cancerosa", fala com rancor.

Vítimas do preconceito

Inúmeras histórias como a de Marli contribuem para a estigmatização dos ebós. Muitos têm pavor só de pensar em bozó. Os que não têm medo têm, pelo menos, respeito à energia que acreditam existir por trás daquele prato de comida que encontram no caminho. A evangélica Marta nunca foi a um terreiro de candomblé, mas tem uma definição precisa de ebós: "São coisas que destroem a vida de qualquer um". Apesar de atribuir um poder maligno aos trabalhos feitos, ela garante que não teme despachos. "Canso de passar por cima. Outro dia, passei por um carneiro morto na encruzilhada, panela de barro, pano vermelho e tudo. Sei que o mal existe, mas o maior é Deus. Porque antes de existir o mal, existiu Jesus para desfazer esta obra".

Apesar de o candomblé ser uma religião de predominância tão forte na Bahia, a desinformação ainda é grande e contribui para o fortalecimento desta visão preconceituosa. Mas quem é adepto ou conhece um pouco do ritual dos terreiros tem uma visão diferente da maior parte da população, que prefere mesmo é passar longe dos bozós e não quer nem ouvir falar em macumba. Apesar de muitas vezes ser associado a forças negativas e até diabólicas, ebó, na língua iorubá, significa doação, sacrifício, oferenda. "Ebó é para a melhora da gente. A gente faz para uma limpeza de corpo, arria e melhora. Faz parte da nossa caminhada", revela Marileide Brito de Jesus, filha-de-santo do terreiro Ilê Axé Máa Asé Ni Odé, localizado em Simões filho. Pai Balbino de Paula, líder do Terreiro Ilê Axé Opô Aganju, de Lauro de Freitas, também defende as oferendas. "O ebó é para o bem, para abrir caminhos, para a saúde, para a prosperidade".

Não há estudos ou registros que apontem a origem dos ebós. Sabe-se apenas que o ritual foi iniciado pelos africanos e que, antes mesmo de chegar ao Brasil com os negros trazidos compulsoriamente para o trabalho escravo, a prática foi alvo de preconceito. Em terras africanas, os ebós sofreram as primeiras discriminações. Por volta do século XV, os portugueses que iniciavam o processo de colonização, estranharam a forma com que os negros cultuavam seus deuses. Diante do diferente, a reação foi de rejeição. "Os portugueses viam as oferendas e achavam que aquilo não era uma religião. Era qualquer coisa aproximada, rústica, rudimentar. Rotularam como coisa feita e daí surgiu o nome feitiço. Foi o primeiro preconceito devido à impossibilidade de compreender a religião africana além do conceito eurocêntrico de religião revelada, como a Católica", explica o antropólogo e Babalorixá Júlio Braga.

A tradição dos ebós não nasceu no Brasil, mas é perpetuada pelos terreiros de candomblé de todo o país, que lutam para manter a tradição das oferendas. No livro de autoria de Júlio Braga intitulado Na gamela do feitiço, ele analisa a discriminação contra os terreiros de candomblé nas décadas de 20 e 30. "Foi uma guerra santa que aconteceu na Bahia, na primeira metade do século passado", define. O ataque começou através dos ebós, que logo foram chamados de feitiços, mas, no fundo, atingiam a concepção de religião afro-brasileira. A repressão aos rituais chegava a ser caso de polícia e atendia aos interesses da sociedade dominante que não aceitava a forma diferente de culto dos negros.

Os ebós, que estavam nas ruas, eram os principais alvos dos ataques. A reclamação era sempre justificada pela sujeira. Textos dos principais jornais da época, como Jornal da Bahia e Diário de Notícias, davam conta desta situação. "Os jornalistas imbuídos do papel de defensores da classe dominante e da religião oficial faziam matérias dizendo que foram colocadas porcarias, coisas feitas, em frente à faculdade para matar o médico tal", recorda o antropólogo, que considera as sucessivas agressões à religião como uma tentativa de eliminar os terreiros de candomblé no estado. "Houve uma guerra e a religião conseguiu sobreviver a duras penas. Como desde aquela época as leis brasileiras já garantiam o direito a liberdade de culto, era inconcebível querer acabar com o candomblé simplesmente para atender aos interesses da Igreja Católica e da sociedade dominante".

Medo e terror

O ebó ainda hoje é, muitas vezes, visto como algo estranho que causa medo e terror. É considerado por muitos uma estupidez, um primitivismo. "Há uma série de metáforas para esconder uma preocupação maior de não querer perceber a sociedade brasileira como multirracial e pluricultural, mas o sentimento religioso afro-brasileiro é tão forte que a sociedade brasileira, historicamente, não teve como extingui-lo. As religiões afro-brasileiras venceram pelo cansaço, mas o preconceito persiste", acusa o Babalorixá.

A rejeição não conseguiu acabar com a manifestação das oferendas no candomblé, mas, por força destas ações de exclusão, os terreiros foram, paulatinamente, se deslocando dos grandes centros urbanos. Não é por acaso que muitos estão localizados nas áreas periféricas de Salvador. Em bairros populares, como Itinga e São Caetano, a reação diante de um ebó arriado é menor do que seria na Graça, Barra e Vilas do Atlântico. "Na periferia, a comunidade tem um cotidiano muito próximo da vida dos terreiros. O preconceito vem de outras categorias sociais. Não digo nem de branco ou de preto para não parecer uma dicotomia de cor. Acho que a questão é mais de classe social", conclui o antropólogo.

*Os nomes foram trocados para preservar a identidade das fontes.
fonte: A Gaxéta