Trabalho escravo abastece produção da marca Talita Kume
Grupo de oito pessoas, todas vindas da Bolívia, foi libertado de trabalho escravo em oficina de costura precária e improvisada que produzia peças de roupa para a marca Talita Kume, com sede no bairro do Bom Retiro, na capital paulistaTextos e fotos Bianca Pyl*
São Paulo (SP) - Um grupo de oito pessoas vindas da Bolívia, incluindo um adolescente de 17 anos, foi resgatado de condições análogas à escravidão pela fiscalização dedicada ao combate desse tipo de crime em áreas urbanas. A libertação ocorreu no último dia 19 de junho. Além dos indícios de tráfico de pessoas, as vítimas eram submetidas a jornadas exaustivas, à servidão por dívida, ao cerceamento de liberdade de ir e vir e a condições de trabalho degradantes. O grupo costurava para a marca coreana Talita Kume, cuja sede fica no bairro do Bom Retiro, na zona central da capital.
Crianças ficavam expostas a diversos riscos na oficina de costura interditada |
Fachada do imóvel fiscalizado (SRTE/SP) |
Há cerca de cinco anos, a Confecções Talita Kume Ltda. contrata serviços dos donos da referida oficina de costura. As vítimas libertadas estavam de quatro a oito meses trabalhando no local. Quase todos tiveram os valores das passagens da Bolívia para o Brasil descontados dos salários, o que revela indícios de tráfico de pessoas e comprova a prática de servidão por dívida, uma vez que despesas de moradia, alimentação e limpeza também eram cobradas.
Deputados federais Walter Feldman, Ivan Valente e Cláudio Puty (da esq. para dir) e o coord. da fiscalização Luís Alexandre Faria, antes da fiscalização |
A ação foi acompanhada ainda pelos deputados federais Cláudio Puty (PT/PA), Walter Feldman (PSDB/SP) e Ivan Valente (PSol/SP), respectivamente presidente, relator e integrante da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Trabalho Escravo, instaurada na Parlamento nacional no final de março de 2012 com o propósito de investigar a ocorrência do crime de redução de condições análogas à de escravo (art. 149 do Código Penal) em todo o país.
R$1 por peçaO valor pago às costureiras e costureiros era de R$ 1 por peça. A Talita Kume, por sua vez, remunerava o dono da oficina, em média, R$ 3,80 por peça. O vestido que estava sendo costurado pelas vítimas de trabalho escravo no momento da fiscalização custa na loja, em média, R$ 49,90. De acordo com a fiscalização da SRTE/SP, braço do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), a precarização da relação de trabalho se dá com o objetivo de aumentar os lucros da empresa, caracterizando o dumping social e a concorrência desleal.
Vítimas resgatadas afixavam etiqueta da marca nos vestidos que costuravam |
Empresa Talita Kume impunha multas as oficinas por problemas na produção |
Condições de trabalhoO sobrado onde funcionava a oficina tinha poucos cômodos, alguns deles divididos de forma completamente improvisada. O quarto em que dormiam três trabalhadores era pequeno, com dois beliches que ocupavam todo o espaço do local. Não havia mesas para as refeições e os empregados comiam sentados na cama. O casal com duas filhas dormia em outro quarto, assim como o casal que administrava a precária oficina, que funcionada há anos.
Quartos improvisados deixavam patente a falta de estruturação da oficina |
A jornada de trabalho se estendia das 7h às 22h e, eventualmente, até 1h da madrugada do dia seguinte. A extensão variava de acordo com a encomenda. A jornada exaustiva imposta às empregadas e empregados está diretamente relacionada ao baixo valor pago pela Talita Kume por cada peça costurada, na avaliação da SRTE/SP. Costureiras e costureiros passavam o tempo todo sentados em cadeiras inadequadas para o serviço.
Fiação elétrica exposta e precária aumentava o risco de incêndio no local |
O local de trabalho e os alojamentos, que funcionavam no mesmo sobrado da Zona Norte, foram interditados. Também foi interditado o depósito da Talita Kume, na sede da empresa no bairro do Bom Retiro. Até o momento, a empresa não comprovou a correção dos problemas e, portanto, os locais continuam interditados.
Sala do imóvel era utilizada como unidade de produção de roupa (SRTE/SP) |
A investigação da cadeia produtiva da Talita Kume - realizada pela SRTE/SP e pela Receita Federal - chegou até a oficina na Zona Norte de São Paulo por conta das notas fiscais com encomendas de mais de duas mil peças utilizando o CPF da filha do dono da oficina. A Talita Kume contrata diretamente a oficina de costura precária e irregular. Não há, nesse caso, nenhum intermediário, como ocorreu em casos envolvendo grandes marcas de roupa.
A oficina onde foi realizado o resgate dos trabalhadores é apenas uma das que produzem diretamente para a marca Talita Kume. A fiscalização apontou a existência de outras 16 oficinas que costuram peças de vestuário comercializadas pela marca. Somente cinco delas possuem Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ), e mesmo assim, não têm funcionários devidamente registrados em carteira, como exige a lei.
Escada que dá acesso ao depósito da loja, que foi interditado pela fiscalização |
Providências, reaçõesApós a fiscalização, as empregadas e os empregados resgatados receberam as verbas rescisórias no valor de mais de R$ 40 mil. Eles estão recebendo auxílio da SEJUDC e da DPU para regularizar a documentação.
A empresa Talita Kume ainda não comprovou às autoridades fiscais a correção emergencial das condições dos alojamentos e da oficina, que ofereciam risco à saúde e à vida de costureiras e costureiros.
Foram lavrados 42 autos de infração contra a Talita Kume, entre eles o de discriminação étnica de indígenas Quechua e Aymara, grupo ao qual pertencem as trabalhadoras e trabalhadores bolivianos, que recebem tratamento pior do que os empregados que trabalham na loja ou na sede da companhia.
Procurado pela reportagem, o advogado da empresa, Nelson Hoing, não quis se pronunciar sobre o caso.
André Lee, diretor administrativo da Associação Brasileira de Coreanos (ABC) - que é signatária do Pacto Contra a Precarização e Pelo Emprego e Trabalho Decentes em São Paulo - Cadeia Produtiva das Confecções - relatou que a entidade orientou a comunidade coreana sobre trabalho escravo em 2009. "Não estamos sabendo de nenhum problema. Para nós, estava tudo certo", disse. Recentemente outros flagrantes de trabalho escravo envolveram empresas coreanas, a WS Modas Ltda (Belart) e a Patrícia Su Hyun Ha Confecções Ltda. - intermediárias da grife Gregory. Nestes últimos casos, 23 pessoas foram libertadas de trabalho escravido em maio de 2012.
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**Os nomes são fictícios para proteger