sexta-feira, 16 de abril de 2010

Oposição entre religião e feitiçaria


Oposição entre religião e feitiçaria
Na Bahia, essa idéia de tradição africana mais pura, sobretudo feitiçaria yorubá, classificada como verdadeira religião por oposição à magia dos terreiros impuros, é bastante visível no final dos anos trinta, inclusive como uma ideologia corrente no segmento afro-brasileiro local. A assepsia dos terreiros nagôs transparece claramente nas argutas observações que Ruth Landes faz sobre os candomblé baianos, referentes aos anos de 1938 e 1939. Transitando entre os terreiros africanos mais “puros” e os caboclos mais estigmatizados, ela expressa em várias passagens essa diferenciação com base no uso da magia.
Referindo-se a uma mãe-de-santo de terreiro caboclo, diz:

“Fiquei surpresa ao ouvi-la ordenar um despacho, pois isso era magia negra, que se supunha repugnar às mães, pelo menos às da tradição iorubá. Lembrei-me de ter ouvido Menininha contar, indignada, que um homem tinha procurado na sua casa da cidade para lhe pedir um despacho contra o amante da moça que ele mesmo desejava (...). Ele lhe oferecera ama boa quantia, mas ela recusara, dizendo, severamente:

- Saiba o senhor que eu sou, mãe do culto africano e não uma feiticeira perversa. Eu mantenho relações com os deuses, não com o diabo. Com certeza o senhor compreende. Posso curar uma doença sua e tentar alcançar a sua felicidade por todos os meios indicados pelos deuses, mas não posso trabalhar para o diabo” (Landes. 1967. p. 303).,

Grandes feitos maléficos eram atribuídos aos terreiros caboclos, como, por exemplo, a morte de Rui Barbosa. Assim, os centros não-ortodoxos da tradição africana apareciam como redutos do Mal e da feitiçaria, que não se admitiam existir nos terreiros mais africanizados, pois fazia parte do código das mães nagôs não praticarem a magia negra. Esta era apresentada como uma atividade externa aos terreiros de tradição ioruba, embora paralela e, às vezes, vinculada a eles, mas vista como coisa do passado.

“Os cultos nagôs, antigamente, tinham ligações com certos homens que praticavam a adivinhação e a feitiçaria, mas não eram chefes de culto. Um ou dois velhos ainda vivem na Bahia e são chamados babalaõs. Eram consultados por toda a população, os candomblés inclusive, embora a feitiçaria seja proibida na Bahia” (Landes. 1967. p 288).

Essa tentativa de separação entre sacerdote e feiticeiro remete ao esforço desenvolvido pelos intelectuais no sentido de mostrar o Candomblé como verdadeira religião, por oposição à magia, particularmente à magia negra, pois se reconhecia que “a feitiçaria era ilegal no Brasil e também que não havia lugar para ela na atmosfera amável do Candomblé da Bahia” (Landes, 1967, p. 233).

A prática da feitiçaria no interior dos terreiros mais africanizados era apresentada como uma excrescência, algo relacionado com tentativas de subversão da ordem interna do terreiro e de sua estrutura de poder.

“... mais tarde me disseram que a substituta imediata de Menininha, dona Laura, praticava a magia negra, por mais contrario que isso fosse ao código sacerdotal. Mas também se dizia que do¬na Laura fazia questão de contrariar os deuses de Menininha, que considerava uma rival, e não era possível conte-la; na verdade, afirmava-se que ela era muito conhecida e tinha inúmeros clientes” (Landes, 1967, p. 203).

A feitiçaria representava desse modo um perigo para a própria ordem do terreiro e, nessa perspectiva, reproduzia a representação da sociedade mais ampla, também temerosa dos poderes do Mal, que constituía a força dos fracos e que ela tentava domesticar.
Se não e possível extirpar a magia do Candomblé, que seja dirigida apenas para a prática do Bem, mas de qualquer modo o que sobressairá na atividade dos terreiros mais africanizados será a atividade tida como religiosa. A esse respeito é significativa a comparação que a autora faz entre os cultos negros no Sul e no Nordeste, ao expressar sua estranheza diante do fato de uma mãe-de-santo de terreiro caboclo “referir-se tão abertamente à magia” que praticava:

“... lembrei-me também dos jornais do Rio de Janeiro, que varias vezes por semana publicava noticias sobre a magia negra praticada pelos negros cariocas, chefes de templo. Os jornais da Bahia não divulgavam tais noticias senão raramente, preferindo noticiar os espetáculos religiosos das mães” (Landes, 1967, p. 204).

Assim, á desafricanização dos cultos no Sul do País opõe-se a resistência por parte dos terreiros mais “puros” da Bahia, que são apresentados pelos intelectuais de uma forma idealizada, em que o conflito e a magia não aparecem.
Também Edison Carneiro, em seus trabalhos iniciais na década de trinta7, incide nessa diferenciação entre religião e magia, associando esta aos cultos “misturados” de bancos e caboclos e aquela, aos terreiros nagôs mais africanizados.
Foi seguindo o método genético inaugurado por Nina Rodrigues, e procurando a África no Brasil, que Edison Carneiro encontrou as sobrevivências bancos nos terreiros de Angola. Com este dado procura mostrar os exageros do mestre Nina Rodrigues, que se refere ao exclusivismo sudanês dos negros da Bahia. Mas observa que os de Angola copiavam, pelo menos em parte, o ritual nagô e rende-se assim ao modelo interpretativo da superioridade cultural destes e à sua conseqüente transformação em referência no estudo dos outros terreiros. Significativamente, ao estudar os candomblés de caboclo, nos quais identifica uma mítica banco misturada com índio, aplica-lhes nas transcrições das letras dos cantos “as mesmas regras da ortografia nagô” (Carneiro, 1981, p. 64). As comparações com o modelo nagô são constantes quando se refere aos candomblés de caboclo;

“Os candomblés de caboclo degradam-se cada vez mais, adaptando-se ao ritual espírita, produzindo as atuais sessões de caboclo, bastante conhecidas na Bahia.
Falta-lhes a complexidade dos candomblés de nagô ou de africanos, isto e, de jejes-nagôs. A extrema simplicidade do ritual possibilita o mais largo charlatanismo...” (Carneiro, 1981, p. 70).

O charlatanismo e a exploração imperavam, segundo ele, nas sessões de caboclo, escala final do continuum construído por Artur Ramos e adotado por Edison Carneiro, tendo como ponto de partida o nagô. Diz ele:

“O espiritismo, influindo sobre os candomblé afro-bantos produziu as atuais sessões de caboclo da Bahia, último degrau na escala dos candomblés, espécie de ponte para adesão completa do negro banco ao chamado baixo espiritismo” (Carneiro. 1981, p. 235).

E acrescenta:

“Nestas sessões de caboclo exerce-se a medicina mágica, base provável do fenômeno social do curandeirismo no Brasil” (Carneiro, 1981, p. 238).

O curandeirismo era prática ilegal e, assim, ao tentar criar uma legalidade para os “africanos puros”, desqualifica e ilegítima os “caboclos degenerados”, com suas práticas de curandeirismo e feitiçaria.
Esse ponto de vista aparece bem explicitado em outra passagem, onde o Autor compara as mães-de-santo nagôs aos pais-de-santo caboclos:

“Vários destes pais jamais sofrerão o processo de feitura de santo. São pais sem treino, espontâneos, distantes de orgânica tradição africana –os clandestinos do desprezo nagô (...). São esses pais que mais tem concorrido para a desmoralização dos candomblés, entregando-se á pratica do curandeirismo e da feitiçaria - por dinheiro.

Os casos .de curandeirismo e de feitiçaria nos candomblés nagôs e jejes são raros, mas, quando ocorrem, se limitam a praticas mágicas inócuas, no máximo um chá de plantas medicinais ou um despacho (ebó) para Exu, na encruzilhada mais próxima”- (Carneiro, 1967, p. 130).

Em suma, é a oposição entre religião e feitiçaria que retomada e trabalha¬da para conseguir-se a legitimidade do Candomblé africano idealizado.
Fonte: Revista do Museu de Arqueologia de
Etnologia da Universidade de São Paulo