terça-feira, 11 de outubro de 2011

Um Hotel em São Paulo recusou hospedar Elza Soares.


Nota deste blog: O Racismo de ontem e de hoje, parafraseando a escritora Arísia Barros de Alagoas.


por O Cruzeiro - 17 de outubro de 1964.

Rachel de Queiróz, a personalidade literária- colaboradora do governo militar e integrante do Conselho Federal de Educação em 1967- já afirmava a condição criminosa do racismo, mesmo tropeçando na ilusória propaganda política da República democrática e anti-racista.
Rachael lançou em 1930, aos vinte anos de idade, O Quinze, obra literária que ocupa papel de destaque no desenvolvimento do romance nordestino e mostra os flagelados do Nordeste contra a seca e a miséria.( O que foi que mudou?)
Contundente, o texto abaixo da Revisa O Cruzeiro: Do Preconceito de Côr, apesar da inocente crença da escritora, adepta ao golpe de 1964, nas propostas políticas dos "ex-escravocratas" das terras de Cabral, nos mostra da necessária e imprescindível aliança entre muit@s e tant@s para que a denúncia contra o racismo brasileiro não caia no vácuo que alimenta camaleão. .
Rachel de Queiroz morreu aos 92 anos, dormindo em sua rede.
O racismo renasce cotidianamente. É um camaleão. Muitas vidas, diversas faces.
Eu te amo, meu Brasil?


Do preconceito de côr
Rachel de Queiroz

LÊ-SE nos jornais que um hotel de S. Paulo recusou hospedar a cantora Elza Soares, estrêla de palco e televisão, musa de Garrincha e môça de côr. Está bom de se fazer um “revival” da Lei Afonso Arinos, a qual, aparentemente, anda meio esquecida. Se êles ousam recusar uma artista famosa, como não se atreverão a tratar pessoas obscuras e sem cartaz? A cantora, justamente indignada, protestou, e o seu empresário promete agir judicialmente contra o hoteleiro criminoso.
Mas, ao lado das indispensáveis punitivas contra os vilões racistas, creio que também se pode fazer um pouco de propaganda esclarecedora: explicar aos comerciantes que correm perigo de cair em pecado de discriminação, em defesa de supostos interêsses da sua clientela, que êles são vítimas de um tremendo êrro de apreciação. Ao contrário do que pensam os que se anquilosam em preconceitos vitorianos - para o mundo de hoje, a democracia racial brasileira não é fraqueza que se oculte, é atrativo que se proclama. Democracia racial, tal como legislamos e tentamos praticar integralmente no Brasil, é artigo de propaganda e atração turística. Tão bom como ruínas romanas ou como as belezas da Guanabara. Para o estrangeiro, habitante de países onde só há gente de uma côr, ou onde há uma barreira rígida separando as côres dos homens, a democracia racial brasileira, a nossa mistura descuidosa, é espetáculo fascinante e incomum. Todos querem ver como é que ela funciona e se é verdade que funciona. Só o visitante estúpido, crassamente reacionário e, portanto, indesejável, evitará, aqui, o hotel que não seja exclusivo de brancos.
Então não compreendem que o hóspede do apartamento vizinho se sentirá em vez de chocado, pelo contrário, interessado, trilled, ao saber que está paredes-meias dessa Cleópatra do samba, sôbre a qual os jornais falam e cujo encanto fatal, dizem, influi tanto nos resultados da seleção de futebol campeã do Mundo quanto o nome do técnico ou o escalamento do time?
Hoje a democracia racial brasileira é assunto tão mundialmente conhecido quanto Brasília, e mais vendável turìsticamente, porque está por tôda parte, não se oculta a algumas horas de avião no meio do planalto goiano. O turista chega aqui (principalmente o que vem dos países onde o negro é segredado pela linha de côr), ansioso por ver com os seus próprios olhos como é que pode ser um país onde a côr das gentes não importa - e se sentirá decepcionado, enganado, ao verificar que a propaganda mentiu, e que aqui também há segregação - apenas mais hipócrita.
Assim, o hoteleiro que recusa hóspedes por motivo de côr, além de estar cometendo crime que dá cadeia e multa (multa essa que, diga-se de passagem, deveria ser atualizada - multa de cinco a vinte contos é hoje ridiculamente baixa, é um verdadeiro convite à contravenção), está também se prejudicando comercialmente. Pois, para o turista, vir ao Brasil e não encontrar pessoas de tôdas as origens raciais convivendo familiarmente, sem preconceitos nem diferenças, é como ir ao Ártico e não ver esquimós, ir à Rússia e não ver comunista, ir a Paris e encontrar fechado o Folies Bergère e escamoteada a Tôrre Eiffel.
Vejam o tremendo impacto publicitário que representou a eleição da linda Miss Guanabara. Numa eleição onde as brancas concorriam em maioria, fizemos Miss Brasil, Vera Lúcia Couto, mulata daquela estirpe que, com grande propriedade, se chama imperial. Mulata imperial, palmeira imperial, modinha imperial - qualquer coisa que é ao mesmo tempo belo, tradicional, emocionante e majestoso.
E o êxito de Vera Lúcia lá fora, a simpatia geral com que a receberam, representa não só o sucesso pessoal da beleza da môça, como também o que ela significa para uma humanidade exausta de ódios, de preconceitos mesquinhos - a alegria da boa mistura, a liberdade de cada um nascer da côr que queira e, sobretudo, a novidade daquela presença de beleza fora de padrões e tabus.
Fazendo de Vera Lúcia a nossa miss nacional, na verdade promovemos a legitimação da mulata perante o Mundo.

O Cruzeiro - 17 de outubro de 1964.