sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Festa de Santa Bárbara e Sincretismo No Tambor de Mina


Festa de Santa Bárbara e Sincretismo
No Tambor de Mina
Sérgio Ferretti

Santa Bárbara é considerada padroeira do tambor de mina do Maranhão e São Benedito é seu principal auxiliar. Sua festa, comemorada no dia 4 de dezembro, é uma das mais importantes no calendário afro-maranhense. Quase todos os terreiros a comemoram com um a três dias de toque. É comum haver festa na maioria dos terreiros nesse dia, mas não é uma festa obrigatória e há terreiros que não tocam nessa data.
O orixá Iansã ou Oiá, no rito nagô, ou seu correspondente, o vodum nochê Sobô, no rito jêje, é a deusa dos ventos e das tempestades. Sincretizada no Brasil com Santa Bárbara, sua festa assinala o início do ano litúrgico no tambor de mina. Com isso as religiões afro-brasileiras acompanham o calendário da Igreja Católica que, nessa época, comemora o tempo do Advento e a espera de Cristo no Natal. No Maranhão, dizem que se um terreiro quer fazer festa no próximo ano, tem que comemorar Santa Bárbara. O dia da semana em que cai sua festa (este ano um sábado) é sempre o mesmo dia da semana em que caem o Natal e o Ano Novo, como lembra dona Celeste da Casa das Minas. Como essa data é perto do fim do ano e próxima ao tempo do Advento para a Igreja Católica, assinala também o início do ano litrúrgico nos terreiros de mina, cujo calendário acompanha geralmente o calendário católico.


Na tradição do tambor de mina, portanto, o ano não se inicia em primeiro de janeiro, com o ano civil, mas no dia 4 de dezembro.
A virgem e mártir Santa Bárbara foi muito cultuada pela Igreja Católica na Idade Média e no Renascimento, como mostram pinturas e imagens conhecidas na história da arte, sobretudo entre os pintores flamengos e escultores barrocos. No Brasil, seu culto foi largamente difundido pelo catolicismo e são comuns imagens de Santa Bárbara em Igrejas antigas e nos Museus de Arte Sacra em todo o país. Ela é invocada contra explosões, raios e tempestades e também é padroeira dos mineradores, como nos foi dito diante de sua imagem que encontramos no interior de uma antiga mina de ouro no Estado de Minas Gerais.
Entre os atributos de sua imagem aparece uma torre, lembrando que ela foi presa e martirizada numa torre. Outros atributos são: uma palma, símbolo da virgindade, ou uma espada, identificada pelos devotos afro-brasileiros com a qualidade de guerreira do orixá Iansã, e também um cálice. Em cima da porta do "comé", ou quarto dos segredos da Casa das Minas, há um quadro representando Santa Bárbara. Dona Celeste diz que é porque Santa Bárbara é a mãe de todos os terreiros de mina. Dona Deni, atual chefe da Casa, nos lembra que é importante não confundir Santa Bárbara com o vodum Sobô, do culto mina jêje, ou com o orixá Iansã-Oiá, dos cultos nagôs, afirmando que são entidades distintas. Os participantes mais envolvidos com a religião têm perfeita consciência da diferença entre santos e orixás e muitos deles são devotos de ambos. Na Casa das Minas Jêje, o chefe da família de voduns nagôs é Badé Quevioçô. Nochê Sobô é sua mãe ou irmã mais velha, que o criou. Assim, ela é considerada mãe (nochê) pelos jêjes e nagôs.
No dia de Santa Bárbara, as mineiras antigas costumam ir cedo assistir à missa numa igreja católica. Durante o dia, conforme as possibilidades, oferecem uma ave para Iansã-Oiá ou para nochê Sobô. O sacrifício é uma cerimônia participada por poucos iniciados. Depois prepara-se a oferenda, que no início da tarde é colocada por algumas horas no altar privado africano. O acarajé é um alimento importante desta oferenda. Depois de anoitecer, a obrigação, como é chamada, é servida aos devotos. No dia 4 de dezembro a festa nos terreiros se inicia à noite com uma ladainha cantada em latim, diante do altar católico, se possível acompanhada por conjunto musical com trombone, clarinete, banjo, rabeca, violão ou guitarra elétrica. Depois, seguem-se os toques, com cânticos e danças que variam conforme a tradição de cada casa. Quando há possibilidade, o organizador principal da festa, que recebe a entidade comemorada ou um caboclo que a representa, costuma oferecer, com a ajuda de amigos e colaboradores, um jantar, um bolo com refrigerantes ou mesa de doces, mingau de milho e cafezinho. Algumas casas realizam também toque na véspera e no dia seguinte. Nessa festa, os dançantes usam vestimentas nas cores branca, azul e/ou vermelha.
Nos últimos anos, a Igreja Católica resolveu "caçar", ou reprimir, o culto de alguns santos com a justificativa de que não tiveram existência histórica comprovada ou que foram sincretizados com entidades espirituais africanas como Santa Filomena, Santa Efigênia, São Cristóvão, Santa Luzia, São Jorge, Santa Bárbara e outros. No passado, a mesma Igreja incentivou essas devoções, como se comprova nos templos mais antigos pela grande quantidade de suas imagens, muitas hoje recolhidas a museus como obras de arte.
Devotos dos cultos afros costumam preservar a devoção a esses e outros santos populares, sincretizados com os orixás mais conhecidos do rito nagô. No Maranhão, se diz que o vodum ou orixá tem devoção a este ou aquele santo e seus devotos os acompanham. Algumas autoridades, tanto católicas quanto dos cultos afros, atualmente fazem esforço para combater o sincretismo, considerando-o um disfarce que, se foi necessário no passado, hoje é dispensável. A maioria dos participantes das religiões afro-brasileiras, entretanto, se considera também católica, seguindo principalmente rituais do catolicismo popular, como festas e culto aos santos, promessas, ladainhas, procissões e também participando da missa, da comunhão e de outros rituais católicos.
Constatamos que o sincretismo que existe em todas as religiões está presente de modo intenso e parece-nos mesmo fazer parte da estrutura mais íntima das religiões afro-brasileiras. O calendário dessas religiões, na maioria das casas, segue o calendário católico, que constituía o calendário civil de nosso país até o advento da República. A maioria das festas do calendário religioso afro-brasileiro coincide com as datas em que a Igreja Católica comemora muitos de seus santos. Pode ser que no futuro essa situação se modifique, mas atualmente é o que se constata. Se alguns líderes de cultos afro hoje se dizem não católicos, a maioria dos devotos dessas religiões se considera também católica e não vê problemas nessa "dupla pertença', ou na participação em duas religiões, que pode escandalizar os seguidores de uma lógica mais formal.
Além do ciclo dos santos, em que a Igreja comemora as diversas festas de santos, com datas que as vezes variam com o lugar, a paróquia ou a diocese, o calendário litúrgico católico comemora o ciclo tempo: do Advento, da Quaresma, da Páscoa e de Pentecostes, que são festas móveis, muito importantes para a Igreja. As religiões afro-brasileiras, além de adotarem o calendário dos santos católicos, também comemoram o calendário do tempo: há festas nos terreiros relacionadas com o Advento, a Quaresma, a Páscoa e Pentecostes. Assim, o ano litúrgico católico, como o afro-brasileiro, se iniciam juntos, em dezembro, e não em janeiro, como o ano civil. O católico com o tempo do Advento, no primeiro domingo de dezembro e o afro-brasileiro, com a festa de Santa Bárbara no dia 4 do mesmo mês.
Apesar de haver muitos preconceitos contra o sincretismo, fenômeno considerado mal visto mesmo por estudiosos das religiões, a maioria dos seguidores das religiões afro-brasileras não vê nenhum problema no sincretismo e em participar de mais de uma religião. No dia de Santa Bárbara, vão à missa de manhã e à noite recebem voduns, orixás ou caboclos nos terreiros, pedindo proteção à Santa e às entidades afro-brasileiras, que se distinguem nitidamente dela.