segunda-feira, 2 de maio de 2011

A arte de ressuscitar...



Com a recente redescoberta do Cais do Valongo e do cemitério dos pretos novos, ambos na região da Gamboa e portuária do Rio de Janeiro, a questão da escravidão ressurgiu fortemente. Imaginem só, a poucos anos atrás, em termos históricos humanos, negros eram transportados, comprados, surrados e humilhados em pleno mercado portuário. Esse último achado, o Cais do Valongo, teria sido o maior porto de chegada de infelizes no Brasil: 600 mil. e os que iam morrendo pelo caminho ou já na cidade, enterrados no cemitério dos pretos novos, ali bem pertinho... mas e se um desses negrinhos rebeldes escapa e vaga pelas ruas da cidade ainda hoje? Centenas de anos nos separam dos antigos rituais de humilhação pública daqueles que nem eram considerados humanos... mas e hoje?
Hoje eu vi um menino preto, cabeçudo e esmirrado correndo pelo largo da Carioca. Em cima do seu ombro esquálido ia carregando toneladas de sofrimentos, exclusão e negações. Com ele vão todas as surras, todas as histórias de privações de sua mãe e seus muitos irmãos. Levava consigo também o álcool de seu pai violento, a insalubridade do barraco onde dorme, o trapo no corpo, a inexistência do chuveiro e o choro famélico de mais 10 irmãos... levava ainda uma infinidade de desejos justos, mas que nunca se realizarão...Ele é rápido e terá que aprender a arte de ressuscitar muitas vezes na sua vida, pois será assassinado em cada uma de suas mais mínimas esperanças...
Mas corre, não se rende e corre...corre e apanha uma bolsa com nome de escritor de luxo, aquele mesmo, que quase ninguém leu, aquele, autor de "Os miseráveis"... Bela ironia... O que vale mais? O menino ou a bolsa? O Que é maior, o menino ou o celular? Dez anos de idade ou tecnologia? Depende: se a bolsa não for falsa e custar mais do que cinco mil reais será ela, pois essa quantia é muito maior do que a que o Estado resolveu investir nesse menino a vida toda, exceto, talvez, se ao invés de morto ele for preso, quando então restará comprovada e sentenciada a sua verdadeira natureza: fardo fiscal inútil, oriundo de uma delinqüência existencial e indesejável, típica daqueles que já nascem culpados muito antes de pensarem em cometer ou entender o crime.... aliás, o crime é um mero adereço à sua existência....e olhe que o Estado já o havia tentado matar bem antes, com o controle de natalidade...dribla menino, olé na intolerância e chuta a bola na baliza certa do gol: entre duas lápides do cemitério dos pretos novos...quem sabe um dia vira seleção ?
RafaelMedina/advogadocriminalista/filósofo/prof.universitário


Comentário


È o retrato de uma realidade dura e cruel. Mas que todos, indistintamente, povo (sociedade) e estado, cada vez fazem mais vista grossa. Como que, se o problema não existisse, e se existe, a responsabilidade é do estado, e não do povo (sociedade). A situação vivida por esses meninos, cujo único pecado foi o e terem nascido pobres e abandonados por tudo (estado) e por todos (sociedade), já trazem o rótulo de culpados. E quem inocentá-los haverá de? Quem os vê nas encruzilhadas das cidades, os vêem como vivendo uma situação que seus filhos (menores protegidos), jamais vivenciarão, pois, sentem-se protegidos, pelo mesmo estado que abandona aquelas crianças a sua própria sorte. Paradoxo terrível. E o sentimento de solidariedade e humanidade cada vez mais se afasta das pessoas.
E essas crianças, brancos, negros ou pardos, a cada dia (se não forem assassinados), ressuscitam a exemplo do acervo histórico do Cais do Valongo, como que, a nos lembrar (povo/sociedade/estado), de que eles existem, e que os nossos olhos devem se voltar em sua direção, mas com os olhos de enxergar e não somente de ver.
João Batista de Ayrá/advogado/jornalista/babalorixá