domingo, 14 de agosto de 2011
Festa da Boa Morte atrai baianos e turistas para Cachoeira na Bahia
Procissão da Irmandade marca o início da programação no recôncavo.
Organizada por 23 senhoras, a festa celebra a libertação dos escravos.
Lílian Marques
Do G1 BA
Imagem de Nossa Senhora da Boa Morte é levada em procissão pelas principais ruas de Cachoeira (Foto: Lílian Marques/ G1)A tradicional procissão deu início à Festa da Boa Morte na noite do sábado (13), na cidade de Cachoeira, no Recôncavo Baiano. Vinte e três mulheres, todas com mais de 40 anos, que fazem parte da Irmandade da Boa Morte, levaram a imagem de Nossa Senhora pelas ruas da cidade até a Capela da santa. Cachoeirenses e turistas de todas as partes do mundo acompanharam o cortejo e os cânticos das irmãs.
Tradicional Festa da Boa Morte agita o Recôncavo Baiano até quarta-feiraQuem organiza a festa de 2011 é a provedora da irmandade Ágda de Oliveira. Um cajado sagrado carregado por ela permite que a provedora seja identificada. "Apenas irmãs que já ocuparam a mesma função podem tocar no objeto", avisa a procuradora geral da Irmandade, Maria Lameu. Ágda explica que a eleição para a organização da festa é feita entre as 23 mulheres que fazem parte da instituição.
No meio da foto, a Provedora da Irmandade da Boa
Morte em 2011 (Foto: Lílian Marques/ G1)“Nós escolhemos entre nós quem será a provedora, a procuradora geral, a tesoureira e a escrivã”, relata dona Ágda, que há 16 anos participa da Irmandade fundada em 1820 pela Tia Ciata, com o objetivo de comemorar a alforria de escravos e desejar que aqueles que morreram com sofrimento tivessem uma boa morte.
“Nós comprávamos alforria... a comemoração é sempre pela libertação dos escravos, que sofriam muito. Queremos muita paz para todos. Estou muito feliz em organizar a festa, vai ser ótima!”, completa.
A juíza perpétua da Irmandade, espécie de chefe da organização, é dona Estelita de Souza. Com 104 anos de idade, ela não abre mão de participar da festa. Dona Estelita precisa de um andador para se locomover e fica atenta a todos os movimentos na sede minutos antes da festa começar. Pela tradição da casa, o cargo de juíza perpétua é ocupado pela irmã de maior idade e maior tempo na instituição. É dona Estelita que exerce poder supremo na Irmandade.
Cantor e compositor Jota Veloso acompanhou
procissão deste sábado em Cachoeira
(Foto: Lílian Marques/ G1)Com todas as integrantes vestidas de branco e com velas acessas nas mãos, a Irmandade da Boa Morte começa a procissão por volta das 19h. Um pequeno grupo de quatro pessoas carrega a imagem da santa pelas ruas da cidade.
Os cânticos em homenagem a Nossa Senhora da Boa Morte tomam conta de Cachoeira. A primeira parada é na Capela de Nossa Senhora d’Ajuda. A irmandade leva a santa ao altar, faz orações e sai novamente em procissão.
Em frente da Casa da Estrela, uma nova pausa. O local foi residência da juíza dona Zuleika Machado, à frente da Irmandade até 1985. A parada em frente a casa onde dona Zuleika morava é uma demonstração de respeito pela importância que ela teve para a instituição.
Em seguida, o grupo vai para a Capela de Nossa Senhora da Boa Morte, onde a imagem da santa é colocada no altar. Um padre conduz a missa pelas almas das irmãs falecidas. Com o templo religioso lotado, fiéis acompanham a cerimônia.
O cantor e compositor Jota Veloso, irmão de Caetano Veloso, acompanhou a procissão. Para ele, que nasceu em Santo Amaro, também no Recôncavo Baiano, a festa é tradição. “Sempre que posso, eu venho. É uma das festas mais lindas da Bahia, que mostra a força, perseverança e fé dessas mulheres. É um presente para a Bahia”, diz.
Silvia Disiter e o marido Miguel Arcanjo na
Festa da Boa Morte (Foto: Lílian Marques/ G1)A médica carioca Silvia Disitzer foi à festa pela primeira vez este ano. “Fiquei sabendo [da festa] porque meu marido já veio várias vezes, ele é de Salvador. Estou achando a procissão linda, é maravilhosa e emocionante. Vemos que elas [as mulheres da irmandade] são poucas, são velhinhas, não sei como isso continua. Elas tiveram uma importância enorme. Essa tradição tem que ser mantida”, opina a turista do Rio de Janeiro.
O marido da médica, Niguel Arcanjo, que é presidente do bloco afro Malê de Balê, em Salvador, conta que já foi à festa várias vezes. "Uma vez trouxe uns 300 alunos para conhecer a festa, em 1980. Eu venho sempre, trouxe ela para conhecer", conta.
O irlandês Eanonn Dunehy, que também é médico, está pela segunda vez em Cachoeira para acompanhar a festa, que dura três dias. Ele mora em Salvador há cinco anos e conheceu a festa através do chef de cozinha Benedito de Jesus e do turismólogo Antônio Jorge, amigos que o irlandês fez na capital baiana.
O irlandês Eanonn Dunehy foi à festa pela segunda
vez na companhia de amigos baianos
(Foto: Lílian Marques/ G1)“Acho muito linda, muito interessante. A primeira vez que estive aqui foi há três anos, é uma cultura viva”, diz o médico, que hoje faz pesquisas sobre a cultura afro no Brasil.
Após a cerimônia na Capela da Nossa Senhora da Boa Morte, a festa continua na sede da Irmandade. As 23 mulheres fazem uma ceia que, pela tradição, não pode ter comidas com azeite, nem pimenta. Pão, saladas, assado de peru e frango são alguns dos pratos oferecidos na ceia, que é reservada às irmãs e seus convidados. Elas passam a noite do dia 13 de agosto em vigília.
No domingo (14), as homenagens a Nossa Senhora da Boa Morte começam às 19h, com a Missa de Corpo Presente de Nossa Senhora, na Capela da Irmandade. Às 21h, o grupo de mulheres segue em procissão do enterro da santa pelas principais ruas de Cachoeira.
No dia 15 de agosto (segunda-feira), a Irmandade tem uma programação intensa. Às 5h, há uma alvorada de fogos. O governador da Bahia, Jaques Wagner, e outras autoridades políticas locais, participam, às 9h, de uma sessão solene da festa.
Em seguida, às 10h, haverá a missa de assunção a Nossa Senhora da Boa Morte. Logo depois, a Irmandade fará uma procissão festiva em homenagem a Nossa Senhora da Glória e a posse da Comissão organizadora da festa. Ao meio-dia, a dança toma conta das comemorações da Irmandade, com valsa e samba- de-roda na sede da instituição. A programação segue com um almoço das irmãs, convidados e comunidade. O dia será encerrado com dança. A partir das 16h, as irmãs fazem um samba-de-roda em comemoração a assunção de Maria, no Largo d’Ajuda.
Na terça-feira (16), às 20h, será oferecido um cozido à comunidade, no Largo d’Ajuda. O encerramento da festa será às 20h da quarta-feira (17). Um caruru, comida típica da Bahia, será servido para a comunidade.
Irmandade em missa pelas almas das irmãs
mortas na Capela de Nossa Senhora da Boa Morte
Foto: Lílian Marques/ G1)História
De acordo com dados do Instituto do Patrimônio Histórico e Cultural da Bahia (Ipac), até a década de 1970, a Irmandade da Boa Morte não tinha sede própria e guardava os pertences na casa da juíza perpétua Zuleika Machado.
A festa anual era realizada em casas alugadas. Em 1990, a instituição recebeu três sobrados como doação. Um deles abriga a sede da Irmandade hoje, no Largo D’Ajuda, em Cachoeira.
Em 2010, o governo da Bahia reconheceu a festa da Boa Morte como Patrimônio Imaterial da Bahia. A tradição da festa começou em 1820. A irmandade é composta por mulheres descendentes de escravos africanos e teve início em Salvador, atrás da Igreja da Barroquinha. Era ali que elas praticavam seus rituais. Após serem expulsas da localidade, elas seguiram para o Recôncavo Baiano e, assim, se instalaram em Cachoeira.
Hierarquia
Para integrar a irmandade, as mulheres precisam ter mais de 40 anos e serem ligadas a uma casa de candomblé, que pode ser da linha Ketu, Gegê ou Nagô. Ao serem aceitas, as irmãs passam por um ‘estágio’ de quatro anos.
Dentro dos seus 23 membros, a Irmandade da Boa Morte possui no topo da administração e hierarquia a Juíza Perpétua. A seguir situam-se os cargos de Procuradora-Geral, Provedora, Tesoureira e Escrivã, estando a Procuradora à frente das atividades executivas religiosas e profanas.