terça-feira, 5 de outubro de 2010

Adoção de crianças negras - desafio que persiste


Por Elizabeth Cezar Nunes*
bethcn851@gmail.com


O Senado Federal promoveu em abril deste ano uma audiência pública sobre a situação das crianças haitianas. Um dos temas em debate era o interesse de famílias brasileiras em adotar crianças órfãs após o terremoto que devastou o Haiti, no início de 2010.

Em seu discurso, o embaixador do Haiti no Brasil, Idalbert Pierre-Jean, defendeu que “há várias formas de adoção que não seja a retirada das crianças de um país”. Pierre-Jean manteve-se firme ao relatar que as crianças haitianas permaneceriam em seu país de origem, pois já passaram por um grande trauma de perder a sua família e que seria ainda mais traumático se tivessem que abandonar seu país, sua cultura, suas raízes.

Famílias brasileiras que se manifestam dispostas a adotar crianças de países como o Haiti costumam justificar a intenção como ato humanitário. Seria, no entanto, essa uma demonstração de que os pretendentes à adoção no Brasil estariam abertos para as adoções tardias e inter-raciais?

As pesquisas continuam nos revelando que ainda a discriminação e o preconceito impedem que crianças e adolescentes negras tenham uma família. No Brasil, os pretendentes habilitados para adoção desejam um perfil de crianças que não se encontra nos acolhimentos institucionais.

O Cadastro Nacional de Adoção completou dois anos em abril e já possui 27 mil famílias habilitadas para adoção. Cinco mil crianças e adolescentes disponíveis para serem adotados. Porque a conta não fecha?

No Espírito Santo, segundo matéria publicada no portal do TJ/ES em 07/05/2010, por Silvia Gonçalves, os números da Comissão Estadual Judiciária de Adoção (Ceja) revelam um contra-senso intrigante: mais famílias habilitadas a adotar do que crianças disponíveis à adoção. Segundo especialistas, a razão para esta contradição reside no fato de que a maioria das crianças abrigadas não se encaixa no perfil desejado pelos pretendentes.

Na avaliação do juiz Francisco de Oliveira Neto, da AMB (Associação dos Magistrados Brasileiros), em reportagem publicada na Folha online/Agência Brasil em 09/05/2010, das famílias inscritas, 56% querem adotar crianças de até 3 anos de idade e quase 40% aceitam apenas crianças da cor branca. As restrições de raça, idade e condições saúde são as principais razões para que ainda seja longo o tempo de espera na fila de pais e mães que optaram pela adoção.

Em entrevista à Agência Brasil, o psicólogo Walter Gomes, da Seção de Adoção da Vara da Infância e Juventude do Distrito Federal, calcula em cerca de cinco anos o tempo de espera de quem deseja adotar uma criança até dois anos. “Mas quem se habilita a acolher uma criança de 8 anos consegue isso em dois meses.”http://www1.folha.uol.com.br/folha/cotidiano/ult95u732494.shtml

Em Salvador, o TJ/BA que lançou a campanha sobre a adoção neste mês de maio, colocou a disposição da população um balcão para tirar as dúvidas sobre a adoção. Segundo o assessor jurídico Marcel Mariano, a pergunta mais freqüente feita pela população se referia às crianças abrigadas. Por que muitas crianças se encontram em abrigos sem adoção?

Marcel explica que “a maioria dessas crianças está fora dos padrões de procura dos futuros pais adotivos, o que faz com que fiquem mais tempo à espera da adoção”. E acrescenta que “a procura padrão é por crianças menores de cinco anos de idade, sexo feminino e de cor clara”.

Nota-se que o discurso continua, e que a escolha de um filho (a) por adoção permanece guiada por um vínculo que se estabelece entre o adotante e o adotado. As crianças e adolescentes permanecem expostas numa espécie de “prateleira” em que os fatores padrões dominantes no momento da escolha são a cor e a idade. Percebe-se que há um “padrão mercadológico” presente nesse tipo de prática em que se encomendam filhos de acordo com seus atributos físicos.

A cor que se evidencia no momento em que os pretendentes à adoção escolhem seus filhos (as) não é a mesma que se vislumbra quando uma criança ou adolescente, esteja ela em guarda provisória ou definitivamente adotada, é vítima de maus tratos, tortura, violência física e psicológica de quem tem o dever de cuidar, de respeitar de acolher. Neste momento, as mídias se esquecem de declarar a cor destas crianças.

Propõe-se para garantir o direito à convivência familiar a crianças e adolescentes que ainda aguardam por adoção em acolhimento institucional que se façam a integração e as parcerias, seja com os grupos de apoio à adoção, seja com as Varas da Infância e Juventude ou com o Ministério Público, para que possam propiciar estratégias que permitam aos pretendentes a oportunidade, de forma mais consistente e madura, para adoção de crianças e adolescentes negros.

Outra estratégia interessante seria estimular os candidatos pretendentes à adoção a visitarem as instituições de acolhimento para que conheçam a realidade de todas as crianças e adolescentes que nelas se encontram. A proposta não é simplesmente escolher a criança ou o adolescente, mas sim proporcionar aos interessados o contato com as crianças em acolhimento institucional, fomentando motivações pautadas pelo afeto.

Percebe-se que há a necessidade urgente de enfrentar o racismo, a discriminação e o preconceito. As crianças e adolescentes negros não podem mais esperar. Em breve as crianças ou adolescentes ditos como inadotáveis serão maiores e estarão disponíveis para se apresentarem à vida fora do acolhimento institucional. E, neste momento, quando serão adultos, qual a proteção que o Estado lhes garante?



*Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Brasília (UniCeub).