domingo, 17 de outubro de 2010

Líderes religiosos tiram proveito da polêmica sobre aborto


Líderes religiosos tiram proveito da polêmica sobre aborto, diz pesquisadora
Professora da UFRJ entende que líderes religiosos tentam forçar candidatos a assumir compromissos futuros em torno de temas morais, como o aborto


Pregação eletrônica: religiosos usam tecnologia para difundir boataria equivocada sobre Dilma e o aborto (Foto: Reprodução)
São Paulo – A primeira semana do segundo turno da disputa presidencial parece ter aberto uma corrida sem precedentes pelo voto evangélico. A boataria em torno do aborto foi apontada pela campanha de Dilma Rousseff (PT) como fator para explicar o crescimento de Marina Silva (PV) na reta final - fortemente votada entre evangélicos e religiosos em geral - e a queda da ex-ministra.

Caso a avaliação esteja correta, é o caso de se perguntar qual o tamanho deste eleitorado e de que maneira se comporta. Como lembrou o deputado Ciro Gomes em entrevista à Rede Brasil Atual, trata-se de um tema que envolve “questões religiosas, questões morais, éticas, sanitárias, emocionais, psicológicas”. Em suma, “questões terríveis.” Ou seja, não é apenas o eleitorado evangélico que se vê tocado pelo assunto na hora de definir o voto.


De todo modo, alguns fatos lançaram holofotes para a força de segmentos evangélicos na disseminação de informações na reta final do primeiro turno. O principal envolveu o pastor Paschoal Piragine Júnior, de Curitiba. O video em que ataca Dilma, falando que querem enfraquecer a família e criminalizar os que são contra a “prática da homossexualidade”, foi visto por três milhões de pessoas no YouTube. E foi distribuído em DVDs Brasil afora.

Maria das Dores Campos Machado, professora do Núcleo de Pesquisas em Religião, Gênero, Ação Social e Política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), estuda a influência dos líderes religiosos sobre a vida política.

Ela indica que várias igrejas têm como base social um público feminino de baixa escolaridade. “Não se chega a essas mulheres se não se tiver uma ligação com essa liderança religiosa, que é realmente fundamental. O pastor acaba sendo uma correia de transmissão das ideias políticas.”

De acordo com os dados do Censo 2000 do IBGE, os evangélicos representavam, no início da década, 15,6% da população. Pensando em termos eleitorais, um segmento nada desprezível. Levantamento do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) indica que a bancada evangélica terá crescimento na legislatura a ser iniciada em 2011. Nas eleições deste mês, foram eleitos 63 deputados e três senadores evangélicos, crescimento de 23 cadeiras na comparação com o Congresso atual.

Mas isso não significa consenso. “O mundo evangélico é de extrema disputa de poder. Um universo muito pragmático onde as disputas são muito acirradas e levadas para fora do templo”, lembra a professora da UFRJ.

Embora o aborto seja um raro tema com poder unificador dos fiéis, isso não se dá entre os líderes religiosos. É preciso entender a profunda fragmentação e o funcionamento de cada uma dessas denominações religiosas. A Assembleia de Deus, à qual se integra Marina Silva, não tem uma posição coesa em torno de candidatura nas eleições. Há pastores com diferentes posições.

A Igreja Universal, por outro lado, é vista como uma instituição de caráter mais centralizado, de discurso mais homogêneo. A essa denominação se filia o senador reeleito Marcelo Crivella (PRB-RJ), que esta semana participou de reunião da coligação de Dilma.

O encontro teve como finalidade detectar problemas e afinar discursos. Crivella indicou que trabalhará junto às lideranças para desfazer os boatos em torno de Dilma. Um deles indica o vice da petista, Michel Temer, como um satanista que provocará a morte da ex-ministra para ficar com o poder. “Agora, com mais tempo, um pouquinho mais de bom senso, os candidatos conseguem expressar a verdade e as coisas vão voltar ao normal”, argumenta o senador.

Compromissos futuros
Na tarefa política de fazer as coisas voltarem ao normal, é difícil dimensionar qual será o tamanho da ajuda dada por outros líderes político-religiosos a Crivella. A base evangélica eleita para o Congresso é bem dividida em termos partidários. Embora o PRB, governista, tenha levado nove das 66 cadeiras de evangélicos, há parlamentares em partidos da oposição e há os que se alinhem sempre com o eleitorado, independentemente da sigla de filiação. Há, dentre esses líderes, os que aceitam discutir o aborto em caso de fetos anencéfalos, e há os que não aceitem discutir o tema sob nenhuma perspectiva.

“Descriminalização não é o mesmo que transformar o aborto em método contraceptivo. Precisamos fazer uma discussão clara sobre o tema, fora do momento eleitoral, para que as pessoas não fiquem suscetíveis a informações que deturpem as ideias”, lamenta Maria das Dores Campos Machado, que considera que a discussão acalorada e distorcida terá como vítimas as mulheres que todos os anos precisam utilizar o sistema de saúde após recorrerem a um aborto.

A professora da UFRJ avalia que os líderes religiosos fazem uma disputa política como a de qualquer outro setor, ou seja, querem chamar os candidatos a compromissos futuros. “Não nos iludamos. Os líderes religiosos não são ingênuos. O que querem é forçar uma negociação, forçar que sejam ouvidos neste momento.”

Se for este o caminho, funcionou. Dilma ficou em uma saia-justa, pressionada por dois lados opostos a assumir uma posição definitiva. De um lado, setores do PT que entendem que o melhor seria descriminalizar o procedimento. De outro, os que querem uma condenação enfática do aborto. A posição original da candidata, que era a defesa de uma ampla discussão da sociedade sobre o tema, virou presa fácil daqueles que desejam dar outro rumo a esta informação.

O adversário José Serra (PSDB), que em 1998 assinou norma no Ministério da Saúde legalizando o aborto em caso de gravidez resultante de violência (estupro), esta semana preferiu resumir em uma frase seu pensamento a respeito, sem explicar exatamente o que quis dizer e, portanto, sem entrar em detalhes. “Nunca disse que era a favor do aborto, porque sou contra o aborto."