quarta-feira, 10 de novembro de 2010

A espinhosa missão de nascer nordestino


A espinhosa missão de nascer nordestino
Por Jaciara Santos–jornalista
Meses atrás, recebi da amiga Flavia Vasconcelos, colega de AQR, um e-mail intitulado Manifesto São Paulo para os Paulistas. Vinha acompanhado do link e era a porta de entrada para um blog que não deixava dúvidas quanto ao seu caráter xenofóbico. No texto de apresentação, sem meias palavras, já dizia pra que veio:

Quantas vezes você, paulista, presenciou cenas de desrespeito praticado por migrantes? Invadirem espaços, agirem como se estivessem em sua terra. Imporem sua cultura e costumes à nossa vontade. Inundam nosso estado, exigem serviços, põem-se de ‘vítimas’, apagam nossa identidade. Assim somos desrespeitados. E dentro da nossa terra!

Não bastando, acham-se no direito de proibir o paulista de opinar sobre o tema. Se contrariados, já querem acusar de “conceitos prévios” e denunciar. Impuseram a nós que era um tema proibido, e nós aceitamos isso até hoje.

Porém, estes artifícios sutis usados para nos calar, não são próprios de um sistema democrático. ‘Surge então a idéia de reunir em um Manifesto, o pensamento dos paulistas, não ouvidos e sem espaço na mídia e pelas autoridades.’”

Indignada, Flavia repassou a mensagem a seu grupo de amigos, sugerindo que nos insurgíssemos contra aquela barbaridade. Aconselhava para repassarmos ao máximo de pessoas de modo a fazermos uma corrente que fosse capaz de se contrapor àquela manifestação preconceituosa. Para isso, deveríamos acessar o sítio e postar comentários em que externássemos nosso repúdio. Não concordei. Ponderei que, se fizéssemos aquela pequena revolução, estaríamos dando visibilidade ao tal site, um lixo que deveria simplesmente ser deletado da nossa lista de endereços. Repassar aquilo era como propagar um vírus. Não devíamos dar esse prazer mórbido a seus autores, argumentava. Acabei por convencer o grupo e decidimos virar a página.

A lembrança desse episódio me vem à mente por conta do vendaval provocado pelas declarações preconceituosas dirigidas aos nordestinos, via internet, por aquela universitária paulista, cujo nome nem merece ser mencionado. Aquela que externou o desejo de nos ver mortos por afogamento, em uma dessas enchentes tão comuns aqui na região. A jovem descarregou seus dejetos verbais no microblog Twitter, após o Tribunal Superior Eleitoral confirmar a voz das urnas, expressando a vontade dos 55.752.092 brasileiros (56,05% dos votos válidos) que escolheram a ex-ministra Dilma Rousseff presidente do país. Irresignada, a estudante de direito invocava a ira de deuses e de pecadores, rogando que se abatesse sobre o Nordeste um dilúvio capaz de varrer da face da terra todos os cabeças chatas de sotaque arrastado e com sobrenome Santos ou Silva, espalhados pelos quase 1,6 milhão km² de terras localizadas entre o norte e o leste do país.

Ainda no clima de guerra que tomou conta do país na última campanha eleitoral, o mundo caiu à cabeça da universitária. Sincero ou não, seu pedido de desculpas postado no Orkut sequer foi considerado. As agressões verbais da jovem foram devolvidas com sandices do mesmo calibre. Choveram, aqui e ali, ameaças de ações criminais (teriam mesmo respaldo jurídico ou tudo não passa de factóides?). Ora, quem frequenta o mundo virtual nas ondas de redes sociais como o Twitter, sabe o quanto de lixo circula por ali. A tal estudante pode até ser xenófoba, fascista e racista, mas quem garante que não passa de uma inconsequente em busca de seus 15 minutos de fama no ciberespaço?

Mais que os tweets trôpegos da futura advogada (será que passa no Exame de Ordem?), me preocupa a firmeza de propósitos dos defensores do Manifesto São Paulo para os Paulistas, capazes de escrever declarações do tipo

(…) Nós paulistas andamos nas ruas e não nos sentimos em casa. Só se vê pessoas de outra cultura e valores. Desrespeitam nossos costumes, e o paulista é forçado a se calar. Do contrário, recebe acusações de “preconceito”. Que democracia é esta, na qual a liberdade de expressão é unilateral? Na qual pessoas ofendidas têm que se manter caladas? Estão exigindo a inserção da cultura nordestina na grade curricular das escolas paulistas!!!! Estão criando em São Paulo leis em homenagem a si mesmos! Porém, nós paulistas jamais fomos ouvidos em nossas opiniões. Em resposta a tudo, fazemos o nosso democrático Manifesto (…)”.

Mais adiante, o documento, que possui 116 reivindicações, relaciona no item 101 algumas recomendações a serem observadas pelas e diversas instâncias do Poder Executivo:

(…) Reivindicamos as seguintes medidas:

a) Torne-se crime no Estado de São Paulo, a invasão e loteamento de terrenos ou prédios – públicos ou privados. São Paulo não foi buscá-los em sua origem. Portanto, não tem obrigação de sofrer suas práticas.

b) Cobrança de água, luz e IPTU nas favelas, sem taxas diferenciadas. Sem tolerância a roubos de serviços e ligações irregulares, sendo também encarado como crimes.

c) Suspensão de TODO e QUALQUER benefício e gratuidades a migrantes. Seja pelo estado e todas as prefeituras. A SABER: medicamentos gratuitos, auxílio-aluguel, mãe-paulistana, bolsas por número de filhos, casas populares, leve-leite, uniforme, material, transporte escolar, cestas básicas, bolsas diversas, auxílios-financeiros, e todos os demais não-mencionados. Trata-se apenas do estado parar de conceder o que NÃO tem obrigação de conceder. Como já dito, São Paulo deve cuidar dos SEUS pobres.

d) O uso dos serviços públicos (hospitais, postos, escolas, creches, assistência social, etc.) sejam limitados, conforme mencionado nos itens 88 e 33.

e) Total proibição de camelôs e todo tipo de comércio ilegal. Nas ruas, praças, calçadas, barracas, etc. (que inclusive causa riscos a pedestres). Com apreensão e prisão em caso de reincidência. Ambulantes têm o total direito de fazer suas atividades. Em suas terras de origem

f) Tolerância zero com todo tipo de crimes

g) Não tolerar transgressão a leis contra ruído, desordens, veículos de som e forrós ilegais, fraudes, burlas de catraca, pichações, desrespeitos.(…)”

E quem disse que a estudante e o manifesto paulistas são as únicas manifestações de preconceito e racismo dirigidos aos nordestinos país afora? Termos e expressões como “denegrir”, “pé na cozinha” e “baianada” usados desde sempre não são preconceituosos? E quem nunca ouviu uma frase do tipo “fulano (a) é bonito (a), apesar de ser negro (a)”?

Não creio que a estudante paulista tenha inaugurado o preconceito contra nordestinos, boa parte de nós, pretos e pobres. O preconceito é latente e dissimulado, mas sempre existiu. A revolta causada pelas sandices vomitadas na rede mundial de computadores pela universitária parece estar muito mais associada ao momento político do que propriamente ao destempero verbal de uma tuiteira irresponsável. Pior que mirar os tweets de uma estudante inconsequente é fechar os olhos para um manifesto que se prepara à surdina e nos subterrâneoas do mundo real.